Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

Você está em: Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864 > Maio > Variedades


Variedades

Os rumores que tinham emocionado a cidade de Poitiers cessaram completamente, conforme nos disseram, mas parece que os Espíritos barulhentos transportaram o palco de suas ações para as cercanias. Eis o que, a respeito, se lê no Pays:


“Os Espíritos batedores de Poitiers começam a fazer escola e povoam os campos vizinhos. Escrevem de Ville-au-Moine, a 24 de fevereiro, ao Courrier de la Vienne (não confundir com o Journal de la Vienne, especial para a casa de O.):

“Senhor redator,

“Há alguns dias nossa região está preocupada com a presença, em Bois-deDoeuil, de Espíritos batedores, que espalham o terror em nossos vilarejos. A casa do Sr. Perroche é seu ponto de encontro: todas as noites, entre onze horas e meia noite, o Espírito se manifesta por nove, onze ou treze pancadas, marcadas por duas e uma e às seis da manhã, pelo mesmo barulho.

“Notai, senhor, que os golpes são dados à cabeceira de uma cama onde se deita uma senhora, semimorta de pavor, que afirma que recebe as comunicações de um tio de seu marido, falecido em nossa aldeia há um mês. É incrível. Assim, eu e vários amigos quisemos conhecer a verdade, e para isto fomos pernoitar em Bois-deDoeuil, onde testemunhamos os fatos que nos tinham contado. Vimos até balançar, no sentido longitudinal, o berço de uma criança que parecia não estar em contato com ninguém.

“A princípio rimos da coisa, mas vendo que todas as precauções tomadas para descobrir um estratagema não havia dado resultado, retiramo-nos com mais estupor que vontade de rir.

“Se o barulho continuar, a casa do Sr. Perroche não comportará os curiosos de Marsais, Priaire, Migré, Doeuil e até de Villeneuve-la-Contesse que chegam aos bandos para lá passar a noite e tentar descobrir as profundezas do mistério.

“Recebei, etc.”

Sobre tais acontecimentos faremos apenas uma curta reflexão. O Journal de la Vienne, relatando-os, tinha anunciado reiteradamente que estavam na pista do ou dos malandros, autores dessas perturbações, que não custariam a ser pilhados. Se não o conseguiram, não podem acusar a autoridade de negligência.

Como é possível que numa casa ocupada de alto a baixo por seus agentes, puderam os malandros continuar suas manobras em sua presença, sem que lhes pudessem pôr a mão? É preciso convir que eles tinham ao mesmo tempo muita audácia e muita habilidade, porquanto enfrentaram uma brigada sem serem vistos. Além disso, é preciso que esse grupo de traquinas seja muito numeroso, pois fazem as mesmas brincadeiras em diversas cidades e a anos de intervalo, sem jamais serem pilhados. Os casos da Rua des Grès e da Rua des Noyers, em Paris, das GrandesVentes, perto de Dieppe, e tantos outros, também não renderam nenhum resultado. Como é que a polícia, que possui tão grandes recursos e despista os mais hábeis e os mais astutos malfeitores, não vence alguns barulhentos? Já refletiram sobre isto?

Aliás, os fatos não são novos, como se pode ver pelo relato seguinte.


Escrevem-nos de São Petersburgo:

“Venerável mestre, tendo lido no primeiro fascículo da Revista Espírita de 1864 o caso de um Espírito batedor do século dezesseis, lembrei-me de outro, que talvez julgueis digno de um pequeno espaço em vosso jornal. Tomo-o de uma notícia sobre a vida e o caráter do Tasso, escrita pelo Sr. Suard, secretário perpétuo da classe de língua e literatura francesas e inserto na tradução da Jerusalém Libertada, publicada em 1803.

“Após dizer que os sentimentos religiosos do Tasso, exaltados em consequência de sua disposição melancólica e das infelicidades resultantes, levaram-no a persuadir-se seriamente de que era objeto das perseguições de um Espírito que derramava tudo em sua casa; roubava-lhe o dinheiro e retirava de sua mesa, diante de seus olhos, tudo quanto lhe servia, acrescenta, com o seu historiógrafo: “Eis a maneira pela qual o próprio Tasso lhe dá conta dessa perseguição:

“O irmão R... (manda ele dizer a um de seus amigos) trouxe-me duas cartas vossas, mas uma delas desapareceu assim que a li, e creio que o duende a levou, tanto mais quanto era aquela em que dele falais. É um desses prodígios dos quais tantas vezes fui testemunha no hospital, o que não permite duvidar que sejam obra de algum mágico, e tenho muitas outras provas. Hoje mesmo retirou um pão da minha frente, e outro dia um prato de frutas.”

A seguir lamenta-se dos livros e papéis que lhe roubam e acrescenta: “Os que desapareceram enquanto eu não estava aqui, podem ter sido levados por homens que, penso, têm chaves de todas as minhas caixas, de sorte que nada mais tenho que eu possa defender dos assaltos dos inimigos ou do diabo, a não ser a minha vontade, que jamais consentirá que algo me seja ensinado por ele ou seus sectários, nem a contrair familiaridade com ele ou seus magos.”

Em outra carta diz ele: “Tudo vai de mal a pior. Esse diabo, que jamais me deixava, quer eu dormisse quer passeasse, vendo que não conseguia de mim o acordo que desejava, tomou a decisão de roubar abertamente o meu dinheiro.”

“De outras vezes, continua o autor da notícia, ele julgou que a Virgem Maria lhe aparecia, e o Padre Sevassi conta que numa doença que teve na prisão, o Tasso se recomendou com tanto fervor à Santa Virgem, que ela lhe apareceu e o curou. O Tasso consagrou esse milagre num soneto.

“Continuando, o duende transformou-se num demônio mais tratável, com quem o Tasso pretendia conversar com familiaridade, e que lhe ensinava coisas maravilhosas. Contudo, pouco satisfeito com esse estranho comércio, o Tasso lhe atribuía a origem à imprudência que cometera na juventude, de compor um diálogo onde se supunha a conversar com um Espírito. “...o que eu não teria querido fazer seriamente.” acrescenta ele, “ainda que me tivesse sido possível.”

“O Sr. Suard termina o relato dizendo: “Não se pode evitar uma triste reflexão, ao pensar que foi aos trinta anos, depois de haver escrito uma obra imortal, que o infeliz foi escolhido para dar o mais deplorável exemplo de fraqueza de espírito.”

“Vós, entretanto, senhor, graças à luz do Espiritismo, podereis fazer outro julgamento, e vereis nesses fatos, tenho certeza, mais um elo na cadeia dos fenômenos espíritas que ligam os tempos antigos à época atual.”

Sem sombra de dúvida, os fatos que hoje se passam, perfeitamente verificados e explicados, provam que o Tasso podia achar-se sob o domínio de uma dessas obsessões que diariamente testemunhamos, e que nada têm de sobrenatural.

Se ele tivesse conhecido a verdadeira causa, não se teria com ela impressionado mais do que se tem sido em nossos dias, mas naquela época a ideia do diabo, dos feiticeiros e dos mágicos estava em pleno vigor, e como, longe de combatê-la, buscavam entretê-la, ela podia reagir de modo prejudicial sobre os cérebros fracos. É, pois, mais do que provável que o Tasso não era mais louco do que o são os obsedados de nossos dias, aos quais são necessários cuidados morais e não medicamentos.


TEXTOS RELACIONADOS

Mostrar itens relacionados