Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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Variedades

Devemos à gentileza do Sr. Flammarion a informação acerca de uma carta que lhe foi dirigida e que contém a seguinte passagem:

Provavelmente vos imaginais, caro senhor, ser o primeiro astrônomo que se tenha ocupado de Espiritismo. Desenganai-vos. Há um século e meio Fontenelle fazia tiptologia com a senhorita Letard, médium. Divertindo-me esta manhã a folhear um velho manual epistolar publicado por Philipon de la Madeleine, há cinquenta anos, encontrei uma carta da senhorita de Launai, que foi mais tarde Madame de Staël, dirigida pela duquesa do Maine ao secretário da Academia de Ciências, relativamente a uma aventura, da qual eis o resumo:

Em 1713 uma moça chamada Letard pretendia comunicar-se com os Espíritos, tal como Sócrates com o seu demônio. O Sr. Fontenelle foi ver essa moça, e como na conversa ele deixava transparecer dúvidas sobre essa espécie de charlatanismo, a Sra. de Maine, que não duvidava, encarregou a senhorita de Launai de lhe escrever a respeito disso.

PHILIPON DE LA MADELEINE

Sobre o fato encontra-se esta nota numa edição das obras escolhidas de Fontenelle, publicadas em Londres em 1761.

Uma jovem, chamada senhorita Letard, no começo do século, excitou a curiosidade do público por um suposto prodígio. Todos aí acorriam, e o Sr. Fontenelle, aconselhado pelo duque de Orléans, também foi ver a maravilha. É a respeito disso que a senhorita de Launai lhe havia escrito. Eis a carta:

“A aventura da senhorita Letard faz menos barulho, senhor, que o testemunho que destes. Admiram-se, e talvez com alguma razão, que o destruidor dos oráculos; que aquele que derrubou o tripé das sibilas, se tenha ajoelhado ante a senhorita Letard. Qual! dizem os críticos. Este homem que pôs bem a claro as fraudes feitas a mil léguas de distância e mais de dois mil anos antes dele, não pôde descobrir uma astúcia tramada aos seus olhos! Os finórios pretendem que, como bom pirrônico, achando tudo incerto, vós achais tudo possível. Por outro lado, os devotos parecem muito edificados com as homenagens que prestastes ao diabo. Eles esperam que isto vá mais longe. Por mim, senhor, suspendo o julgamento até ser melhor esclarecida.”

Resposta do Sr. Fontenelle:

“Terei a honra, senhorita, de vos responder a mesma coisa que respondi a um de meus amigos, que me escreveu de Marly, no dia seguinte ao em que estive em casa do Espírito. Eu mandei dizer-lhe que tinha ouvido ruídos, cuja mecânica não conhecia, mas que, para decidir, seria necessário um exame mais exato do que aquele que eu havia feito, e repeti-lo. Não mudei de linguagem, mas porque não concluí absolutamente que era um artifício, acusaram-me de crer que fosse um duende, e como o público não se detém em tão belo caminho, a mim atribuíram o que eu não havia dito. Não há grande mal nisso. Se erraram atribuindo-me declarações que não fiz, fizeram-me a honra de chamar a atenção sobre mim, e uma coisa compensa a outra. Eu não imaginei que o fato de ter desacreditado as velhas profetizas de Delfos fosse um estímulo para destruir uma jovem viva e da qual só se tinha falado bem. Se, entretanto, acham que faltei ao meu dever, de outra vez terei um tom mais impiedoso e mais filosófico. Há muito censuram minha pouca severidade. É preciso que eu seja mesmo incorrigível, pois que a idade, a experiência e as injustiças do mundo nada fazem. Eis, senhorita, tudo quanto vos posso dizer sobre o Espírito que me atraiu com uma carta que eu suspeitava de boa vontade ter sido ditada, porque, enfim, eu não estou longe de crer nisto. Assim, quando me vier um demônio familiar, eu vo-lo direi com mais graça e num tom mais engenhoso, mas não mais sinceramente que sou, etc.”

OBSERVAÇÃO: Como se vê, Fontenelle não se pronuncia pró nem contra, mas limita-se a constatar o fato. Era a prudência, que falta à maioria dos negadores de nossa época, que cortam aquilo que nem mesmo se deram ao trabalho de observar, com o risco de mais tarde receberem o desmentido da experiência. Entretanto, é evidente que ele se inclina pela afirmativa, coisa notável para um homem da sua posição e no século do cepticismo por excelência. Longe de acusar a senhorita Letard de charlatanismo, ele reconhece que dela só falavam bem. Talvez ele estivesse mais convencido do que deixava transparecer e fosse detido apenas por medo do ridículo, tão poderoso naquela época. Contudo, era preciso que estivesse muito abalado para não dizer claramente que era uma charlatanice. Ora, sobre este ponto sua opinião é importante. Afastada a questão de charlatanismo, torna-se evidente que a senhorita Letard era médium espontânea do gênero das irmãs Fox.


A passagem seguinte, tirada de Santo Atanásio, patriarca de Alexandria, um dos pais da Igreja Grega, parece ter sido escrita sob a inspiração das ideias espíritas de hoje.

“A alma não morre, mas o corpo morre quando ela dele se afasta. A alma é para si mesma seu próprio motor; o movimento da alma é a vida. Mesmo quando prisioneira do corpo e como que a ele ligada, ela não se limita às suas estreitas proporções e aí não se encerra, mas, muitas vezes, quando o corpo jaz imóvel e como que inanimado, ela fica desperta por sua própria virtude; e, saindo da matéria, posto que a ela ainda ligada, ela concebe e contempla existências além do globo terrestre; ela vê os santos desprendidos do envoltório dos corpos; ela vê os anjos e a eles sobe, na liberdade de sua pura inocência.

“Inteiramente separada do corpo, e quando a Deus aprouver tirar-lhe a cadeia que ele lhe impõe, não terá ela, eu vos pergunto, uma visão muito mais clara de sua natureza imortal? Se hoje mesmo, e nos entraves da carne, ela já vive uma vida completamente exterior, viverá muito mais após a morte do corpo, graças a Deus que, por seu Verbo, a fez assim. Ela compreende, ela abarca em si as ideias de eternidade, as ideias de infinito, porque ela é imortal. Da mesma forma que o corpo, que é mortal, só percebe o material e perecível, a alma, que vê e medita sobre as coisas imortais, é necessariamente imortal e viverá sempre, porque os pensamentos e as imagens de imortalidade jamais a deixam e nela são como um foco vivo, que assegura e alimenta a sua imortalidade.”

(Sanct. Athan. Oper., tomo I, pág. 32. ─ VILLEMAIN, Quadro da eloquência cristã no século IV).



Com efeito, não está aí um quadro exato da radiação exterior da alma durante a vida corporal, e de sua emancipação no sono, no êxtase, no sonambulismo e na catalepsia? O Espiritismo diz exatamente a mesma coisa, e o prova pela experiência.

Com as ideias esparsas contidas na Bíblia, nos Evangelhos, nos Apóstolos e nos Pais da Igreja, sem falar dos escritores profanos, pode-se constituir toda a Doutrina Espírita moderna.

Os comentários feitos a esses escritos, geralmente o foram de um ponto de vista exclusivo e com ideias preconcebidas, e muitos neles não viram senão o que queriam ver, ou lhes faltava a chave necessária para ver outra coisa. Hoje, no entanto, o Espiritismo é a chave que dá o verdadeiro sentido das passagens mal compreendidas.

Até o presente, esses fragmentos são recolhidos parcialmente, mas dia virá em que homens de paciência e de saber, e cuja autoridade não poderá ser ignorada, farão desse estudo o objeto de um trabalho especial e completo que projetará luz sobre todas essas questões, e ante a evidência claramente demonstrada, será forçoso render-se.

Acreditamos poder dizer que esse trabalho considerável será obra de membros eminentes da Igreja, que receberão esta missão, porque compreenderão que a religião deve ser progressiva como a Humanidade, sob pena de ser superada, porque há ideias retrógradas em religião como em política. Em tal caso, não avançar é recuar.

Os incrédulos surgem precisamente porque a religião colocou-se fora do movimento científico e progressivo. Ela faz mais, porque declara que esse movimento é obra do demônio, e sempre o combateu. Disso resultou que a Ciência, repelida pela religião, por sua vez repeliu a religião. Daí resulta um antagonismo que não cessará senão quando a religião compreender que não só deve marchar com o progresso, mas ser um elemento do progresso. Todo mundo acreditará em Deus quando ela não o apresentar em contradição com as leis da Natureza, que são obra sua.


Num artigo político muito sério sobre a Polônia, assinado por Bonneau e publicado na Opinion Nationale de 10 de novembro de 1863, lê-se a seguinte passagem:

“Que Francisco José evoque a sombra de sua avó; que peça conselho a Maria Tereza, alma sofredora perseguida pelo remorso da Polônia desmembrada, e a luz far-se-á de repente aos seus olhos”.

Estas palavras dispensam comentários. Tínhamos razão de dizer, mais acima, que a ideia espírita manifesta-se por toda parte. As pessoas são arrastadas pare ela, e em breve ela transbordará.


Lê-se na Histoire de Saint Martial[1], apóstolo das Gálias e notadamente da Aquitânia e do Limousin, pelo Rev. Pe. Bonaventure de Saint-Amable, carmelita descalço, 3ª parte, pág. 752:

“No ano de 1518, no mês de dezembro, em casa de Pierre Juge, negociante de Limoges, um Espírito, durante quinze dias, fazia grande barulho, batendo nas portas e nas tábuas do assoalho e mudando os utensílios de um lugar para outro. Vários religiosos ali foram dizer missa e velar à noite, com círios acesos e água benta, sem que ele se tivesse decidido a falar.

“Um rapaz de dezesseis anos, natural de Ussel, que servia àquele negociante, confessou que aquele Espírito o havia molestado muitas vezes, em sua casa e em vários outros lugares, e acrescentou que um seu parente, que o tinha feito herdeiro, havia morrido na guerra e tinha aparecido muitas vezes a diversos de seus parentes e havia batido em sua irmã, que faleceu três dias depois. Tendo o dito negociante Juge despedido o rapaz, todo esse barulho cessou”.

Evidentemente o jovem era médium inconsciente, de efeitos físicos, como sempre os houve. O conhecimento das leis que regem as relações do mundo visível com o mundo invisível faz com que todos esses fatos supostamente maravilhosos entrem no domínio das leis naturais.




[1] História de São Marcial, não traduzida para a nossa língua. N. do T.


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