Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1864

Allan Kardec

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Julho

O número da Revista de junho estava composto e em parte impresso, quando nos veio a carta que segue, do Pe. Barricand, ao qual mandamos responder como se vê adiante.

“Senhor,

“O Sr. Allan Kardec encarrega-me de acusar o recebimento da carta que lhe dirigistes, e vos dizer que era supérfluo pedir a sua inserção na Revista. Bastaria que lhe tivésseis dirigido uma retificação motivada, para que ele tivesse considerado como um dever de imparcialidade reconhecer o direito. O número da Revista de 1.º de junho já estava pronto no momento da recepção de vossa carta, pelo que aparecerá no número seguinte.

Recebei, etc.

“Lyon, 19 de maio de 1864.

“Senhor,

“Acabo de ler no número de maio da Revista Espírita um artigo no qual meu curso é de tal modo fantasiado e desfigurado, que me vejo na necessidade de lhe dar uma resposta, para destruir a impressão desfavorável que esse artigo deve ter deixado em vossos leitores, no tocante à minha pessoa e ao meu ensino.

“Esse artigo é intitulado: Cursos públicos de Espiritismo em Lyon. Jamais se viu tal designação figurar em nenhum de meus programas, e se alguém veio ao meu curso na crença de que assistiria a lições de Espiritismo, não foi, como insinuais, porque tivesse sido seduzido por um título atraente e um pouco enganador, mas unicamente porque não se deu ao trabalho de ler o que dizem os nossos cartazes.

“Dizeis aos vossos leitores que o jornal La Vérité levanta várias de nossas asserções, e ainda que ele se encarrega de nos refutar, o que, não temos dúvida, acrescentais, ele fará maravilhosamente, a julgar por seu começo. Mas não dais a conhecer essas asserções. É verdade que o nosso contraditor afirma que não é necessário haver feito a sua teologia para tomar de uma pena, e que ele não temerá perseguir-nos apenas com as armas da razão e da fé em Deus, dada pelo Espiritismo;... que a tese paradoxal que sustentamos não se discute;... que nós não nos faríamos de rogado para acompanhar o Espiritismo ao cemitério, mas que não deve haver pressa em dobrar a finados;... que, por sua própria conta, ele está em condições de amamentar por si mesmo, e sem muito trabalho, essa criancinha que se chama a Verdade;... que o sangue do futuro corre mais quente do que nunca nas veias do espírita, e que ele tem a confiança íntima que um dia nos será dado o tom definitivo do mais magnífico TE DEUM.

“O Sr. Allan Kardec está em perfeitas condições de imaginar que essas asserções rebatem as nossas e de assegurar aos seus leitores que, a julgar pelo começo, o diretor do Vérité desempenhar-se-á maravilhosamente da tarefa que se impôs, de nos refutar. No entanto, temos dificuldade em crer que fora da escola espírita tenham a mesma opinião, e chegaríamos até a suspeitar que, se tivesse sido conveniente ao Sr. Diretor da Revista Espírita pôr à disposição dos assinantes, na íntegra, o artigo em que o nosso antagonista aceita a luta, vários deles não teriam hesitado em considerá-lo como um princípio que promete uma refutação maravilhosa de nossas lições contra o Espiritismo.

“Mas, talvez digais, o resumo que dá o Vérité de uma parte de vossa argumentação não a reproduz fielmente? Não, senhor, esse resumo é uma paródia burlesca. Tudo aí é falsificado: nossa linguagem, nossas ideias e nosso raciocínio. Essas expressões altivas: Tenho coragem de vos provar, pedestal pretensioso... relatório enfático, cifras ambiciosas, tudo comédia. A caixa do Sr. Allan Kardec está bem fornida, não é justo que ajude aos seus discípulos, etc., jamais entraram em nossas lições e o Sr. Diretor do Vérité teria poupado o trabalho de no-las atribuir, se tivesse compreendido ou querido compreender o verdadeiro estudo da questão de que tratamos à sua frente.

“Com efeito, de que se tratava? De dar a conhecer ao nosso auditório qual era, em fins de 1862 e de 1863, a situação do Espiritismo em Lyon. Ora, para não nos apoiarmos senão em dados que nenhum espírita pode refutar, em vez de falar de vossas viagens e avaliar o que pudésseis dispor em vossa caixa, contentamo-nos em pôr em oposição vossa brochura intitulada Viagem espírita em 1862 e o vosso artigo da Revista Espírita, de janeiro de 1864, no qual dais conta aos assinantes da situação do Espiritismo em 1863. Da diferença tão marcante de tom e de linguagem notados nos dois documentos, julgamos dever concluir, não como nos faz dizer o Vérité, que o Espiritismo está morto ou agonizante, mas que sofre, ao menos em Lyon, um momento de parada, se já não entrou num período de decadência. Em apoio a esta conclusão, lembramos as confissões do diretor do Vérité, porque, enquanto o Sr. Allan Kardec afirma que em 1862 podiam-se contar, sem exagero, de 25 a 30 mil espíritas lioneses, o Sr. Edoux não tem dificuldade em reconhecer que o seu número hoje não passa de dez mil. Ora, que outro nome, senão o de decadência, pode ser dado a tão sensível diminuição?

“Parece-nos que não há nada mais fácil do que apreender o verdadeiro sentido de tão simples argumento e de fazer-lhe uma análise exata. Mas o Sr. diretor do Vérité, em vez de limitar-se a reproduzir fielmente a nossa exposição, julgou que fosse mais picante dar aos leitores uma bonita amostra de nosso curso, inserindo-a no seu jornal.

“É, entretanto, esse relato, onde a cada linha ressalta a falta de lógica e de sinceridade, que julgastes dar como fundamento a essas insinuações malévolas que tendem a nos apresentar aos vossos leitores como um homem que se imiscui nos vossos atos particulares, que de uma simples suposição tira uma consequência absoluta; que calcula o que há no fundo de vossa caixa para disso fazer o texto de um ensinamento público. Tais acusações, lançadas ao acaso e sem sombra de provas, caem por si mesmas. Conforme a expressão de um autor antigo, basta publicá-las para as refutar: Vestra exposuisse refellisse est.

“Terminando o vosso artigo, julgastes dever ensinar-nos como deve ser feito um curso de teologia. Por nossa vez, abster-nos-emos de vos dar lições, mas que nos seja permitido, pelo menos, vos dar um caridoso conselho, se vos quiserdes poupar muitos desmentidos, de não aceitar mais, senão com certa desconfiança, os relatórios de vossos correspondentes, porque, tomando de empréstimo a linguagem do nosso bom La Fontaine:

‘Nada é mais perigoso que um amigo ignorante.

Melhor seria um inimigo sábio.’

“Peço-vos, e se necessário requeiro, a inserção desta resposta integral no vosso próximo número.

“Recebei a certeza de meus elevados sentimentos.

“A. BARRICAND

“Deão da Faculdade de Teologia.”


As palavras contra as quais reclama o Pe. Barricand são estas: “É fácil ao Sr. Allan Kardec fazer esta afirmação: O Espiritismo está mais forte do que nunca, e citar como principal prova a criação do Ruche e do La Vérité! Senhores, tudo comédia!... Esses dois jornais podem existir, sem que se deva concluir precisamente que o Espiritismo tenha dado um passo à frente... Se me objetardes que esses jornais têm despesas e que para pagá-las há necessidade de assinantes, ou de impor sacrifícios esmagadores, ainda responderei: Comédia!... A caixa do Sr. Allan Kardec é bem fornida, ao que dizem. Não é justo e racional que ele ajude os seus discípulos?”

Elas foram extraídas textualmente do jornal La Vérité de 10 de abril de 1864. Apenas acrescentamos as reflexões muito naturais que as mesmas nos sugeriram, dizendo que a ninguém reconhecemos o direito de avaliar a nossa bolsa e de prejulgar o uso que fazemos do que pensam que possuímos e, ainda menos, de fazer disso texto de um ensinamento público. (Ver a Revista do mês de maio)

Sem verificar se o Pe. Barricand pronunciou as palavras que contesta, ou o equivalente, é de admirar não tenha ele, de saída, pedido a retificação ao jornal de onde as extraímos. Esse jornal é de 10 de abril. Ele aparece em Lyon todas as semanas e lhe é remetido. Ora, sua carta é de 19 de maio e no intervalo cinco números tinham sido publicados. De duas, uma: suas palavras são justas, ou são falsas. Se são falsas, é que o redator, que declara, no artigo, haver assistido à lição do professor, as inventou. Como é então que nesse mesmo artigo ele protesta contra a alegação de ser subvencionado por nós, dizendo que não necessita do auxílio de ninguém e pode andar sozinho? Ter-se-ia equivocado estranhamente. Como é que em presença dessa dupla asserção, o Pe. Barricand deixou passar mais de um mês sem protestar? Seu silêncio, quando não podia ignorá-lo, deve ter sido considerado por nós como um assentimento, pois é muito evidente que se tivessem sido retificadas no Vérité, nós não as teríamos reproduzido.

Em sua carta, o Pe. Barricand volta à tese que sustentou, concernente à suposta decadência do Espiritismo, mas restringindo o alcance de suas palavras. Considerando-se que tal pensamento o tranquiliza, nós lho deixamos de boa vontade, pois nenhum interesse temos em dissuadi-lo. Assim, que ele tire da ausência de cifras precisas sobre número de espíritas as induções que quiser, o que não impedirá que as coisas sigam o seu curso. Pouco nos importa se os nossos adversários acreditam ou não no progresso do Espiritismo. Ao contrário, quanto menos acreditarem, menos dele se ocuparão e mais nos deixarão tranquilos. Far-nosemos até de mortos, se isto lhes for agradável. A eles caberia não nos despertar. Mas, enquanto gritarem, fulminarem, anatematizarem; enquanto usarem de violências e de perseguições, não levarão ninguém a acreditar que estejamos mortos e bem mortos.

Até aqui o clero tinha pensado que um meio de apavorar, em relação ao Espiritismo, fazendo que o repelissem, era exagerar o número de seus adeptos além da medida. Em quantos sermões, ordenações e publicações de todo gênero, estes não foram apresentados como invasores da Sociedade e, por seu aumento, pondo a Igreja em perigo? Atestamos o progresso das ideias espíritas que, melhor do que quaisquer outros, nós mesmos constatamos, mas jamais caímos em cálculos hiperbólicos; jamais dissemos, como certo pregador, que só em Bordeaux, em pouco tempo, foram vendidos mais de 170.000 francos de nossos livros. Não fomos nós que dissemos que havia 20 milhões de espíritas na França, nem, como numa obra recente, 600 milhões no mundo inteiro, o que equivaleria a mais da metade da população total do globo. O resultado desses quadros foi muito diferente do que eles esperavam. Ora, se quiséssemos proceder por indução, suspeitaríamos que o Pe. Barricand quisesse seguir uma tática contrária, atenuando os progressos do Espiritismo, em vez de exaltá-los.

Seja como for, a estatística exata dos espíritas é uma coisa impossível, dado o número imenso de pessoas simpáticas à ideia e que não têm qualquer motivo para se porem em evidência, pois os espíritas não estão arregimentados como numa confraria. Enganar-nos-íamos muito se tomássemos por base o número de grupos oficialmente conhecidos, visto que menos da milésima parte dos adeptos os frequentam. Conhecemos algumas cidades onde não há nenhuma sociedade regular e nas quais há mais espíritas que em outras que contam com diversas sociedades. Aliás, já o dissemos, as sociedades absolutamente não são uma condição necessária à existência do Espiritismo. Algumas se formam hoje e desaparecem amanhã, sem que a marcha do Espiritismo seja entravada de modo algum. O Espiritismo é uma questão de fé e de crença e não de associação.

Quem quer que partilhe de nossas convicções relativas à existência e à manifestação dos Espíritos e das consequências morais daí decorrentes, é espírita de fato, sem que seja necessário estar inscrito num registro ou matrícula ou receber um diploma. Uma simples conversa basta para dar a conhecer os que são simpáticos à ideia ou a repelem, e por aí se julga se ela ganha ou perde terreno.

A avaliação aproximada do número de adeptos repousa nos relatórios internos, pois não existe qualquer base para o estabelecimento de uma cifra rigorosa, cifra, aliás, incessantemente variável. Uma carta, por exemplo, vai nos revelar toda uma família espírita, e por vezes várias famílias de que não tínhamos nenhum conhecimento. Se o Pe. Barricand visse a nossa correspondência talvez mudasse de opinião. Mas não ligamos a isso.

A oposição feita a uma ideia está sempre na razão de sua importância. Se o Espiritismo tivesse sido uma utopia, dele não se teriam ocupado, como de tantas outras teorias. O encarniçamento da luta é indício certo de que o tomam a sério. Mas se há luta entre o Espiritismo e o clero, a história dirá quais foram os agressores. Os ataques e as calúnias de que ele foi objeto forçaram-no a usar as mesmas armas com que o combatiam e a mostrar o lado vulnerável dos adversários. Atacando-o, detiveram a sua marcha? Não. É um fato contatado. Se o tivessem deixado em paz, nem mesmo o nome do clero teria sido pronunciado, e talvez ele tivesse ganho com isso. Atacando-o em nome dos dogmas da Igreja, forçaram-no a discutir o valor das objeções e, por isto mesmo, a entrar num terreno que ele não tinha nenhuma intenção de abordar.

A missão do Espiritismo é combater a incredulidade pela evidência dos fatos; é reconduzir a Deus os que o negligenciavam; é provar o futuro aos que criam no nada. Por que, então, a Igreja lança anátema sobre aqueles aos quais ele dá essa fé, mais do que quando em nada acreditavam? Repelindo os que, por força do Espiritismo, acreditam em Deus e em sua alma, é constrangê-los a buscar um refúgio fora da Igreja. Quem primeiro proclamou que o Espiritismo era uma religião nova, com seu culto e seus sacerdotes, senão o clero? Onde se viu, até o presente, o culto e os sacerdotes do Espiritismo? Se um dia ele se tornar uma religião, o clero é que o terá provocado.


Muito geralmente se pensa que hoje a Igreja admite o fogo do inferno como um fogo moral e não como um fogo material. Tal é, pelo menos, a opinião da maioria dos teólogos e de muitos padres esclarecidos. Contudo, não passa de opinião individual, e não uma crença adquirida pela ortodoxia, do contrário ela seria universalmente professada. Pode-se julgar pelo quadro abaixo, que um pregador traçou do inferno, durante a última quaresma, em Montreuil-sur-Mer:

“O fogo do inferno é milhões de vezes mais intenso que o da Terra, e se um dos corpos que ali queimam sem se consumir fosse lançado sobre o nosso planeta, empestá-lo-ia de ponta a ponta!

“O inferno é uma vasta e sombria caverna, eriçada de pregos pontiagudos, de lâminas de espadas bem afiadas, de navalhas bem cortantes, onde são precipitadas as almas dos danados!”

Seria supérfluo refutar esta descrição. Contudo, poder-se-ia perguntar ao orador, onde ele colheu um conhecimento tão preciso do lugar que descreve. Certamente não foi no Evangelho, onde não se trata de pregos, nem de espadas ou navalhas. Para saber se essas lâminas são bem amoladas e bem afiadas, é preciso têlas visto e experimentado. Será que, novo Enéas ou Orfeu, ele próprio teria descido a essa caverna sombria, que aliás tem um grande traço familiar com o Tártaro dos pagãos? Além disso, deveria ele ter explicado a ação que pregos e navalhas podem ter sobre as almas e a necessidade de serem bem afiados e de boa têmpera. Considerando-se que ele conhece tão bem os detalhes interiores do local, também deveria ter dito onde está situado. Não é no centro da Terra, pois supõe o caso de um desses corpos que ela encerra ser lançado em nosso planeta. Então é no espaço? Mas a astronomia aí lançou o seu olhar muito antes, sem nada descobrir. É verdade que não olhou com os olhos da fé.

Seja como for, o quadro é feito para atrair os incrédulos? É mais que duvidoso, pois é mais próprio para diminuir o número dos crentes.

Em contrapartida, citaremos o seguinte fragmento de uma carta escrita de Riom, mencionada pelo jornal la Vérité, no número de 20 de março de 1864:

“Ontem, para minha grande surpresa e grande satisfação, ouvi em pessoa esta confissão positiva sair da boca de um eloquente pregador, em presença de numeroso auditório admirado: Não há mais inferno. O inferno não existe mais... ele foi admiravelmente substituído. Os fogos da caridade, os fogos do amor resgatam as nossas faltas!

“Nossa divina doutrina (o Espiritismo) não está encerrada inteiramente nestas poucas palavras?”

É inútil dizer qual dos dois teve mais simpatias do auditório, mas o segundo poderia, até, ser acusado de heresia pelo primeiro. Outrora ele teria infalivelmente expiado na fogueira ou numa prisão a audácia de haver proclamado que Deus não manda queimar as suas criaturas.

Esta dupla citação nos sugere as seguintes reflexões:

Se uns acreditam na materialidade das penas e outros não, necessariamente uns têm razão, e os outros não têm.

Este ponto é mais capital do que parece à primeira vista, porque é o caminho aberto às interpretações numa religião fundada na unidade absoluta da crença, e que, em princípio, repele a interpretação.

É bem certo que até hoje a materialidade das penas fez parte das crenças dogmáticas da Igreja. Por que, então, nem todos os teólogos nelas acreditam? Como nem uns nem outros verificaram a coisa por si mesmos, o que leva alguns a ver apenas uma imagem onde outros veem a realidade, senão a razão, que para eles supera a fé cega? Ora, a razão é o livre exame.

Eis, pois, a razão e o livre exame entrando na Igreja pela força da opinião. Poder-se-ia dizer, sem metáfora, ter entrado pela porta do inferno. É a mão colocada no santuário dos dogmas, não pelos leigos, mas pelo próprio clero.

Não se julgue esta uma questão de mínima importância, pois ela contém em si o germe de toda uma revolução religiosa e de um imenso cisma, muito mais radical que o protestantismo, porque ele não ameaça apenas o catolicismo, mas o protestantismo, a Igreja Grega e todas as seitas cristãs. Com efeito, entre a materialidade das penas e as penas puramente morais, há toda a distância do sentido próprio ao sentido figurado, da alegoria à realidade. Desde que se admitam as chamas do inferno como alegoria, torna-se evidente que as palavras de Jesus: “Ide ao inferno eterno” têm um sentido alegórico. Deduz-se daí que o mesmo deve dar-se com muitas outras de suas palavras.

Mas a consequência mais grave é esta: A partir do momento em que se admite a interpretação deste ponto, não há motivo para rejeitá-la sobre outros; é, pois, como dissemos, a porta aberta à livre discussão, um golpe mortal no princípio absoluto da fé cega. A crença na materialidade das penas liga-se inteiramente a outros artigos de fé, que lhes são corolários. Transformada essa crença, as outras transformar-se-ão pela força das coisas, e assim sucessivamente.

Eis, já, uma explicação. Há poucos anos ainda, o dogma Fora do Igreja não há salvação estava em seu pleno vigor. O batismo era condição tão imperiosa que bastava que o filho de um herético o recebesse clandestinamente, e malgrado a vontade dos pais, para ser salvo, porque tudo quanto fosse rigorosamente ortodoxo era irremissivelmente condenado. Mas, tendo-se sublevado a razão humana contra a ideia desses milhões de almas votadas às torturas eternas, quando não tinha dependido delas ser esclarecidas na verdadeira fé; das inúmeras crianças que morrem antes de adquirir a consciência de seus atos, e que nem por isso são menos danadas, se a negligência ou a fé religiosa de seus pais as privou do batismo, a Igreja, a esse respeito, separou-se de seu absolutismo. Hoje ela diz, ou pelo menos diz a maioria de seus teólogos, que essas crianças não são responsáveis pelas faltas de seus pais; que a responsabilidade só começa no momento em que, tendo a possibilidade de serem esclarecidas elas se recusam, e que, portanto, essas crianças não são danadas por não haverem recebido o batismo; que o mesmo se dá com os selvagens e com os idólatras de todas as seitas.

Alguns vão mais longe, pois reconhecem que pela prática das virtudes cristãs, isto é, da humildade e da caridade, pode-se ser salvo em todas as religiões, porque depende também da vontade de um hindu, de um judeu, de um muçulmano, de um protestante, tanto quanto de um católico, viver cristãmente; que aquele que vive assim está na Igreja pelo Espírito, mesmo que não o esteja pela forma. Não está aí o princípio Fora da Igreja não há salvação alargado e transformado no Fora da Caridade não há salvação? É precisamente o que ensina o Espiritismo, entretanto, é exatamente por isto que ele é declarado obra do demônio.

Por que essas máximas seriam antes o sopro do demônio na boca dos espíritas do que na dos ministros da Igreja? Se a ortodoxia da fé está ameaçada, então não é pelo Espiritismo, mas pela própria Igreja, porque ela sofre, malgrado seu, a pressão da opinião geral, e porque, entre os seus membros, há alguns que veem as coisas mais do alto e nos quais a força da lógica supera a fé cega.

Sem dúvida pareceria temerário dizer que a Igreja marcha ao encontro do Espiritismo; é, entretanto, uma verdade que será reconhecida mais tarde. Mesmo marchando para combatê-lo, nem por isso ela deixa de assimilar, pouco a pouco, os seus princípios, sem disso dar-se conta.

Esta nova maneira de encarar o problema da salvação é grave. Posto acima da forma, o Espírito é um princípio eminentemente revolucionário na ortodoxia. Sendo reconhecida possível a salvação fora da Igreja, a eficácia do batismo é relativa, e não absoluta, pois ela se torna um símbolo. Considerando-se que a criança não batizada não responde pela negligência ou pela má vontade dos pais, em que se torna a pena em que incorreu todo o gênero humano pela falta do primeiro homem? Em que se torna o pecado original, tal qual o entende a Igreja?

Os maiores efeitos por vezes decorrem de pequenas causas. O direito de interpretação e de livre exame, uma vez admitido na questão, aparentemente pueril, da materialidade das penas futuras, é um primeiro passo cujas consequências são incalculáveis, porque é uma brecha na imutabilidade dogmática, e uma pedra arrancada arrasta outras. A posição da Igreja é embaraçosa, temos que convir. Contudo, só há um destes dois partidos a tomar: ficar estacionária, a despeito de tudo, ou avançar. Mas então ela não poderá escapar deste dilema: se ela se imobilizar de modo absoluto nos erros do passado, será infalivelmente superada, como já o é, pelo fluxo das ideias novas; depois será isolada e por fim desmembrada, como o seria hoje se tivesse persistido em expulsar de seu seio os que creem no movimento da Terra ou nos períodos geológicos da criação. Se ela entrar na via da interpretação dos dogmas, ela se transformará, e aí entra pelo simples fato de renunciar à materialidade das penas e à necessidade absoluta do batismo.

O perigo de uma transformação, aliás, está clara e energicamente formulado na seguinte passagem de uma brochura publicada pelo Pe. Marin de Boylesve, da Companhia de Jesus, sob o título O Milagre do Diabo, em resposta à Revue des Deux-Mondes:

“Há, entre outras, uma questão que, para a religião cristã, é de vida ou de morte: a questão do milagre. A do diabo não o é menos. Tirai o diabo, e o Cristianismo desaparece. Se o diabo não passar de um mito, a queda de Adão e o pecado original entrarão nas regiões da fábula. Por conseguinte, a redenção, o batismo, a Igreja, o Cristianismo, numa palavra, não têm mais razão de ser. Além disto, a Ciência não poupa esforços para apagar o milagre e suprimir o diabo.”

De sorte que, se a Ciência descobrir uma lei da Natureza que faça entrar nos fatos naturais um fato que é reputado miraculoso; se ela provar a anterioridade da raça humana e a multiplicidade de suas origens, todo o edifício se esboroa. Uma religião é muito frágil quando uma descoberta científica é para ela uma questão de vida ou morte. Eis uma confissão desajeitada. Por nossa conta estamos longe de partilhar das apreensões do Pe. Boylesve em relação ao Cristianismo. Dizemos que o Cristianismo, tal qual saiu da boca de Jesus, mas apenas tal qual saiu, é invulnerável, porque é a lei de Deus.

A conclusão é esta: Nenhuma concessão, sob pena de morrer. O autor esquece de examinar se há mais chances de viver na imobilidade. Nossa opinião é que há menos, e que ainda é melhor viver transformado do que efetivamente não viver.

Num caso como no outro, uma cisão é inevitável. Pode-se até dizer que já existe, pois a unidade doutrinária está rompida, porque não há acordo perfeito no ensino; porque uns aprovam o que outros censuram; porque uns absolvem o que outros condenam. Assim, veem-se fiéis indo de preferência àqueles cujas ideias mais lhes convêm. Dividindo-se os pastores, o rebanho igualmente se divide. Dessa divergência à separação, a distância não é grande. Um passo a mais e os que estão à frente serão tratados como heréticos pelos que ficarem na retaguarda. Ora, eis o cisma estabelecido. Aí está o perigo da imobilidade.

A religião, ou melhor, todas as religiões sofrem, malgrado seu, a influência do movimento progressivo das ideias. Uma necessidade fatal as obriga a se manterem no nível do movimento ascensional, sob pena de naufragarem. Assim, todas têm sido constrangidas, de tempos em tempos, a fazer concessões à Ciência e a abrandar o sentido literal de certas crenças ante a evidência dos fatos. A que repudiasse as descobertas da Ciência e as suas consequências, do ponto de vista religioso, mais cedo ou mais tarde perderia sua autoridade e o seu crédito e aumentaria o número dos incrédulos. Se uma religião qualquer pode ser comprometida pela Ciência, a falta não é da Ciência, mas da religião fundada sobre dogmas absolutos, em contradição com as leis da Natureza, que são leis divinas. Repudiar a Ciência é, pois, repudiar as leis da Natureza e, por isto mesmo, renegar a obra de Deus. Fazê-lo em nome da religião seria pôr Deus em contradição consigo mesmo e fazê-lo dizer: Eu estabeleci leis para reger o mundo, mas não acrediteis nessas leis.

Em todas as épocas, o homem não foi capaz de conhecer todas as leis da Natureza. A descoberta sucessiva dessas leis constitui o progresso. Daí, para as religiões, a necessidade de pôr as suas crenças e os seus dogmas em harmonia com o progresso, sob pena de receberem o desmentido dos fatos constatados pela Ciência. Só com esta condição uma religião é invulnerável. Em nosso entender, a religião deveria fazer mais do que se pôr a reboque do progresso, que ela só acompanha constrangida e forçada. Ela deveria ser a sentinela avançada, porque proclamar a grandeza e a sabedoria de suas leis é honrar a Deus.

A contradição existente entre certas crenças religiosas e as leis naturais produziu a maioria dos incrédulos, cujo número aumenta à medida que se populariza o conhecimento dessas leis. Se fosse impossível o acordo entre a Ciência e a religião, não haveria religião possível. Proclamamos a plenos pulmões a possibilidade e a necessidade desse acordo, porque, em nossa opinião, a Ciência e a religião são irmãs, para a maior glória de Deus, e devem completar-se reciprocamente, em vez de se desmentirem mutuamente. Elas estender-se-ão as mãos, quando a Ciência não vir na religião nada de incompatível com os fatos demonstrados, e a religião não mais tiver que temer a demonstração dos fatos. Pela revelação das leis que regem as relações entre o mundo visível e o invisível, o Espiritismo será o traço de união que lhes permitirá olhar-se face a face, uma sem rir, a outra sem tremer. É pela concordância da fé e da razão que ele diariamente reconduz tantos incrédulos a Deus.


Sob o título acima, o jornal de Constantinopla publicou, em março último, três artigos extensos sobre, ou melhor, contra o Magnetismo e o Espiritismo, que têm, naquela capital, muitos adeptos fervorosos. Como em todas as críticas em geral, em vão procuramos argumentos sérios, ao passo que vimos a prova evidente de que o autor fala do que não conhece ou que só conhece superficialmente. Ele julga o Espiritismo pelas aparências; por ouvir dizer; pela leitura de alguns fragmentos incompletos; pelo relato de alguns fatos excêntricos repudiados pelo próprio Espiritismo, o que lhe parece suficiente para lavrar uma sentença. Como se vê, é uma nova amostra da lógica dos nossos antagonistas. O que parece ter sido mais lido é o Sr. de Mirville, a magia do Sr. Dupotet e a vida do Sr. Home, mas da ciência espírita propriamente dita, nem se veem estudo nem observações sérias.

Estamos longe de pretender que quem estude o Espiritismo deva necessariamente aprová-lo. Mas, se tiver boa-fé, mesmo em sua desaprovação ele não se afastará da verdade e não nos fará dizer o contrário do que dissemos, o que ocorrerá necessariamente se ele não souber tudo quanto dissemos. Não reconheceríamos como crítico sério senão aquele que, saindo das generalidades, aos nossos argumentos opusesse argumentos peremptórios e provasse, sem réplica possível, que os fatos sobre os quais nos apoiamos são falsos, inventados ou radicalmente impossíveis. É o que ninguém ainda fez, tanto o redator do jornal de Constantinopla quanto os outros.

O Espiritismo tem sido atacado de todas as maneiras, com todas as armas que julgaram mais mortíferas. Nada foi poupado para o aniquilar, nem mesmo a calúnia. Não há o mais sutil escritor que, num opúsculo ou num folhetim, não se tenha gabado de lhe haver dado o golpe de misericórdia. Entre os seus adversários encontraram-se homens de real valor, que escavaram até o fundo o arsenal das objeções, com um ardor tanto maior quanto maior o interesse em abafá-lo. Entretanto, a despeito do que tenham feito, não só ele ainda está de pé, mas se expande, dia a dia, cada vez mais; implanta-se por toda parte, e o número de adeptos cresce incessantemente. Isto é um fato notório.

Que concluir de tudo isto? É que nada lhe puderam opor de sério e concludente. Nosso contraditor de Constantinopla será mais feliz? Duvidamos muito, pois não tem melhores argumentos para tanto. Seus artigos, longe de deter o movimento espírita no Oriente, só podem favorecê-lo, como aconteceu com todos do mesmo gênero, pois giram todos exatamente no mesmo círculo. É por isto que não nos preocupamos. Limitar-nos-emos a citar alguns fragmentos, que resumem a opinião do autor.

Não há uma só de suas objeções contra o Espiritismo que não encontre sua refutação em nossas obras. Se tivéssemos que rebater todos os absurdos criados sobre esse assunto, teríamos que nos repetir incessantemente, o que é inútil, considerando-se que, em definitivo, essas críticas sem nenhum fundo sério mais ajudam que prejudicam.

“Ao lado dos praticantes habilidosos, tais como os mágicos, a exemplo do Sr. Dupotet, ou dos médiuns, como o Sr. Home, vêm colocar-se operadores de uma ordem diferente, em cujas primeiras fileiras figura o Sr. Allan Kardec. Este pode ser apresentado como o modelo sobre o qual é moldado todo um quadro de espíritas cuja boa-fé não poderia ser posta em dúvida.

“Os espíritas de Constantinopla pertencem, como já dissemos, a essa escola literária e artística, que milita principalmente por seus escritos, dos quais a Revista Espírita, do Sr. Allan Kardec, é o exemplar mais perfeito. Foram os adeptos dessa categoria que estabeleceram a doutrina. A teoria dos Espíritos não tem mais nenhum segredo para eles; assim, na maioria dos casos, eles desdenham recorrer aos processos materiais empregados pelos médiuns comuns. Eles obtêm manifestações diretas. Seu processo, tão simples quanto eles próprios, consiste em tomar um lápis comum, como o primeiro profano que chegasse, com o auxílio do qual são postos em relação imediata com os Espíritos, e captam o seu ditado. Entre outras vantagens, o método lhes permite pôr de lado toda a modéstia e dar às suas próprias obras os mais exagerados louvores, cobrindo-se com o nome de seus supostos autores.

“Antes de crer na exatidão do médium escrevente mecânico, gostaríamos de ver um idiota escrever alguma bela página, tal como os Espíritos que agem por via mediúnica jamais ditaram. O médium intuitivo é mais aceitável, mas nos parece muito difícil que a experiência ensine a distinguir o pensamento do Espírito do pensamento do médium. Aliás, o papel representado por este último pode ser facilmente explicado. Na maioria dos casos ele é sincero, e é antes a ele do que aos operadores da ordem dos senhores Home e Dupotet que se aplicaria com justeza a opinião emitida pelo Sr. Conde de Gasparin. Quanto à opinião do Sr. de Mirville, aqui não há lugar para discuti-la, pois está perfeitamente constatado que nenhum médium, pelo menos em Constantinopla, seja feiticeiro.

“Se tivéssemos que defender os espíritas contra acusações tão odiosas quanto as que aqui repelimos, bastar-nos-ia, para demonstrar sua completa inocência, citar alguns dos ensinamentos dados pelos Espíritos:

“Os diferentes planetas que circulam no espaço são povoados como a nossa Terra. As observações astronômicas induzem a pensar que os meios para onde vão os seus respectivos habitantes são bastante diferentes para necessitar de organizações corpóreas diferentes, mas o perispírito se acomoda à variedade dos tipos e permite que Espírito que ele recobre encarne na superfície de planetas diferentes.

“O estado moral, intelectual e físico desses mundos forma uma série progressiva, na qual a nossa Terra não ocupa nem a primeira nem a última posição; é, contudo, um dos globos mais materiais e mais atrasados. Uns há onde o mal moral é desconhecido; onde as Artes e as Ciências chegaram a um grau de perfeição que não podemos compreender; onde a organização física nem está sujeita aos sofrimentos, nem às doenças; onde os homens vivem em paz, sem se prejudicarem, isentos de pesares e de preocupações.”

“Com meus novos instrumentos, esta noite verei homens na Lua...” diz, numa passagem, o rei Afonso. Mais felizes do que ele, os espíritas os viram, mas não é certo que invejem a sorte dos lunáticos. Pensamos que nada poderia impedi-los de gozar desde já desse mundo, muito à vontade.

“De tudo o que precede, vê-se a que se reduzem o maravilhoso e o sobrenatural do Espiritismo. Para reduzi-los a nada, basta examinar todos os fatos que acabamos de citar, sem ideias preconcebidas de nele encontrar as mais repreensíveis práticas de feitiçaria, ou a ação de um fluido cuja existência os cientistas negam. Para quem quisesse dar-se ao trabalho de assistir às suas sessões, sem sujeitar-se a tomar os fatos que eles produzem pelo que dizem ser, os Srs. Home e Dupotet, como todos os operadores da mesma ordem, serão muito evidentemente mistificadores interesseiros. Suas operações serão, no máximo, comparáveis, no que concerne à habilidade, às do Sr. Bosco, e este tem a mais a sinceridade, o que não permite levar mais longe a comparação entre eles.

“Muito diferentes dos mágicos de que acabamos de falar, os médiuns da categoria do Sr. Allan Kardec, categoria à qual pertencem, em geral, os médiuns de Constantinopla, são, ao contrário, mistificados. Todos os seus esforços tendem a tornar cada vez mais completa a mistificação de si próprios. A despeito de toda a boa-vontade que se lhes tenha, é realmente impossível levar a sério qualquer de suas práticas. Contudo, é permitido lamentar que criaturas honestas assim passem a maior parte de seu tempo compenetrando-se de erros que para eles se tornam realidade. Por mais inofensivos que, no fundo, possam ser esses erros, não é menos certo que não podem produzir senão resultados funestos, pois tomam o lugar da verdade. É neste sentido que são condenáveis.”

Os próprios espíritas de Constantinopla se encarregaram de responder, por meio de dois artigos que o jornal publicou em seus números de 21 e 22 de março último. Um é de um médium, que dá conta da maneira pela qual sua mediunidade se desenvolveu e triunfou sobre a sua incredulidade. O outro, que reproduzimos a seguir, é em nome de todos.

“Senhor redator,

“Vosso jornal acaba de publicar três longos artigos intitulados: “O Espiritismo em Constantinopla”, em consequência dos quais vimos pedir-vos espaço para as linhas seguintes:

“A doutrina que se baseia na crença num Deus infinitamente justo e infinitamente bom, o amor infinito; que indica como objetivo aos Espíritos criados por esse mesmo Deus, o encaminhamento para a perfeição cada vez mais completa e como castigo, no estado de Espírito, a perfeita percepção desse objetivo, com o pesar de dele se haver afastado, ao mesmo tempo que a necessidade de recomeçar essa marcha ascensional por novas encarnações... A doutrina que ensina a moral mais pura, aquela mesma que o Cristo expunha tão bem por estas simples palavras: Amai-vos uns aos outros... Uma tal doutrina de amor, digamo-lo alto e bom som, pode perfeitamente privar-se dessas manifestações que o autor dos artigos O Espiritismo em Constantinopla, depois de haver prometido explicá-las fora do Espiritismo, limita-se a qualificar de mistificações.

“Mas essas manifestações, hoje tão completamente constatadas, e cuja prova se acha quase que em cada página da história da Humanidade, Deus as permite continuamente, a fim de dar a todos a prova da solidariedade existente entre os Espíritos encarnados e os não encarnados, e isto a fim de que uns e outros se auxiliem mutuamente, e que o ser espiritual, chamado à vida eterna, possa atingir mais facilmente, e sobretudo mais seguramente, o objetivo providencial assinalado à criação.

“Se os fatos dos quais decorrem semelhantes teorias, que são a base da Doutrina Espírita, podem ser tomados, por certas pessoas, como mistificações, ao menos deveriam elas indicar as razões, e, o que seria ainda melhor, apresentar outras teorias mais racionais e sobretudo mais verdadeiras.

“Agora, chamai a verdade feitiçaria, magia, prestidigitação e outros epítetos ainda mais ridículos, e não impedireis que essa verdade se propague e estenda os seus raios benfazejos sobre todo o gênero humano.

“Eis por que o Espiritismo espalhou-se tão rapidamente em toda a face da Terra, e por que, a despeito das críticas do gênero dos citados artigos, isto não impede que os seus adeptos se contem por milhões.

“Os espíritas de Constantinopla.”

Dirigimos aos nossos irmãos espíritas de Constantinopla, tanto em nosso nome pessoal, quanto no dos membros da Sociedade de Paris, as sinceras felicitações que merece sua resposta, ao mesmo tempo digna e moderada.

A carta seguinte, que nos escreveu a respeito o Sr. Repos, advogado, presidente da Sociedade Espírita de Constantinopla, testemunha muito bem o devotamento à causa da doutrina, para que consideremos um dever e um sincero prazer publicá-la, a fim de que os espíritas de todos os países saibam que na capital do Oriente há irmãos com cuja fraternidade podem contar. Falando do Oriente, não devemos esquecer os de Smirna. Eles também fazem jus a todas as suas simpatias.

“Constantinopla, 15 de junho de 1864.

“Caro mestre e mui honrado irmão em Espiritismo,

“Recebi em tempo vossa estimável carta de 8 de abril, que me deu o maior prazer, como aos nossos irmãos espíritas, aos quais não deixei de dar conhecimento em sessão.

“Todos os espíritas de Constantinopla ligam-se a mim para, em conjunto, assegurarmos os nossos fraternos sentimentos a vós e a todos os espíritas que fazem parte da Sociedade de Paris. Nós vos agradecemos pelo encorajamento que nos dais como estímulo para combatermos por nossa grande causa. Ficai persuadido de que não falharemos na tarefa que empreendemos, e que todos os nossos esforços tenderão para a propagação da verdade, do amor ao bem e da emancipação intelectual dos outros homens, nossos mãos em Deus, ainda que tenhamos que sustentar as mais encarniçadas lutas contra os nossos inimigos. Se há homens bastante servis e bastante covardes para ousarem combater a verdade, também os há suficientemente independentes e corajosos para defendê-la, assim obedecendo aos sentimentos de justiça e de amor fraterno, que fazem do ser humano um verdadeiro filho de Deus.

“Foi com vivíssimo interesse que li os interessantes detalhes em vossa carta referida, em relação ao progresso do Espiritismo na França e alhures. Esperamos que no futuro a ideia cresça mais e mais e o desejamos ardentemente pelos nossos irmãos terrenos de todos os países e de todas as religiões.

“O jacto possante da revelação brilha por todos os lados. Cego é quem não o vê, imprudente quem o nega, insensato quem o combate buscando enterrá-lo na fonte. Sua água pura e límpida não vem do trono eterno para se espalhar em suave e fecundo orvalho sobre toda a Terra, que deve regenerar? Nenhuma força humana poderá, então, comprimi-la!... Com efeito, não vemos que, desde que um jacto surge em qualquer parte, se alguém fizer esforços para comprimi-lo, logo se veem milhares de jactos surgindo em todas as direções e em todos os degraus da escala social? Tanto é verdade que a vontade divina é onipotente, e que num dado momento nenhum obstáculo se lhe pode opor, sob pena de ser derrubado e esmagado pelo carro brilhante da justiça e da verdade.

“Caro mestre, tenho um agradável dever a cumprir, o de vos cumprimentar, em meu nome e no de todos os irmãos espíritas do Oriente, pela condenação sofrida por vossas obras pela santíssima inquisição do pensamento, quero dizer a condenação do índex. Rejubilai-vos, pois, com todos os nossos irmãos, se vossas obras levantaram grandes cóleras, que não vos puderam ferir senão se ridicularizando e cada vez mais deixando as unhas de fora. Tal julgamento já foi declarado nulo e não endossado pela opinião pública de todos os países.

“Sem dúvida recebestes os jornais de Constantinopla que vos enviei e nos quais se achavam, em sua maior parte, os artigos contra o Espiritismo e os espíritas. Vistes as nossas duas pequenas respostas? Como as julgais? Aqui produziram bom efeito e agora se fala do Espiritismo mais do que nunca. Esperamos impacientemente o que direis para nos ajudar a combater a maldade e a mentira, que são o único apanágio dos inimigos de nossa bela doutrina.

“Aqui começou a perseguição surda que anunciastes. Um dos nossos irmãos deve à sua qualidade de espírita a perda do emprego, outros são atacados e ameaçados em seus mais caros interesses de família ou nos meios de subsistência, pelas tenebrosas manobras dos eternos inimigos da luz, que ousam dizer que o Espiritismo é obra do anjo das trevas! Se é assim que julgam extingui-lo, enganamse. A perseguição, longe de deter, faz crescer toda ideia que vem do alto. Ela apressa a sua eclosão e a sua maturidade, porque é o adubo que a fecunda; ela demonstra a inexistência de qualquer meio inteligente para combatê-la. Teria a ideia cristã sido abafada no sangue dos mártires?

“Até à vista, caro mestre. Crede em minha dedicação muito sincera a vós e aos irmãos espíritas de Paris, aos quais vos peço apresenteis os meus cumprimentos.

“B. REPOS filho advogado”


Crônica de Paris (de 23 de setembro de 1863)

A propósito dos espectros dos teatros, assim conclui o correspondente, depois de haver feito o seu histórico:

“Assim, no próximo inverno, cada uma poderá regalar seus amigos do espetáculo, tornado popular, com alguns fantasmas e outras curiosidades sobrenaturais. À sobremesa, apagarão as velas e ver-se-ão aparecer, envoltos em seus sudários, os espectros modernos, assim substituindo as quadrinhas que outrora cantavam os nossos avós. Nos bailes, em vez de refrescos, desfilarão fantasmas. Que distração encantadora! Só em pensar a gente sente um arrepio.”

O autor passa ao Espiritismo:

“Considerando-se que falamos de coisas sobrenaturais, não passaremos em silêncio o Livro dos Espíritos. Que título atraente! Quantos mistérios ele não oculta! E se voltarmos ao ponto de partida, que caminho não percorreram essas ideias de alguns anos para cá!

“No começo, esses fenômenos, ainda não explicados, consistiam numa simples mesa posta em movimento pela imposição das mãos. Hoje as mesas não se contentam mais em girar, pular, erguer-se num pé, fazer mil cabriolas. Elas vão mais longe: Elas falam! Quando digo que falam, é que elas têm um alfabeto próprio, e mesmo vários. Basta dirigir-lhes uma pergunta e logo é dada a resposta por pequenas batidas seguidas, com o pé, ou mesmo por meio de um lápis que, seguro pela mão, põe-se a traçar sobre o papel, sinais, palavras, frases inteiras ditadas por uma vontade estranha e desconhecida. Então a mão se torna simples instrumento, um porta-lápis, e o espírito da pessoa fica completamente estranho a tudo o que se passa.

“O Espiritismo ─ é assim que chamam a ciência desses fenômenos ─ em poucos anos fez grandes progressos nos fatos e na prática, mas a teoria, em minha opinião, não fez o mesmo caminho, pois ficou estacionária, e direi por quê.

“É incontestável, a menos que as pessoas que se ocupam dessa matéria não tenham interesse em se enganar e nos enganar, é incontestável que os fatos existem. Eles não se revelam apenas por meio das mesas. Eles se nos apresentam todos os dias e a todas as horas. Eles excitam a admiração de todos, mas cada um fica nisto. Exemplifiquemos:

“Duas pessoas concebem a mesma ideia ou se encontram simultaneamente na mesma palavra; alguém que não encontramos com frequência e em quem acabamos de pensar apresenta-se inopinadamente; batem à nossa porta e, posto que de fora nada indique a pessoa, adivinhamos quem é; uma carta com dinheiro nos chega num momento de urgência; e tantos outros casos tão frequentes, tão numerosos e conhecidos de todo o mundo. Tudo isto pode ser atribuído ao acaso? Não, não pode ser o acaso de modo algum. E por que não seria uma comunicação fluídica inapreciável por nossa organização material, um sexto sentido, enfim, de natureza mais elevada?

“Ninguém sabe onde reside a alma, porquanto ela não é visível nem ponderável nem tangível, contudo, cheios de convicção como estamos, afirmamos a sua existência.

“Qual é a natureza do agente elétrico? O que é o ímã?... Contudo os efeitos da eletricidade e do magnetismo estão continuamente patentes aos nossos olhos.

“Estou persuadido de que um dia acontecerá o mesmo com o Espiritismo, ou seja qual for o nome que em definitivo a Ciência haja por bem lhe dar.

“Há algum tempo vi numerosos casos de catalepsia, de magnetismo, de Espiritismo, e não posso conservar a menor dúvida a seu respeito, mas o que me parece mais difícil é poder explicá-los e atribuí-los a esta ou àquela causa. Portanto, é preciso proceder com prudência e reserva, abstendo-se de cair num dos dois extremos: o de negar todos os fatos, ou o de submetê-los todos a uma teoria prematura.

“A existência dos fenômenos é incontestável; sua teoria ainda está por descobrir, eis hoje o estado da questão. Não se pode negar que haja algo de singular e digno de ser examinado nesta ideia que agitou o mundo inteiro e que reaparece com mais intensidade do que nunca, nessa ideia que tem os seus órgãos periódicos, seus anais de observação; nessa ideia que emocionou os espíritos na Áustria, na Itália, na América, que faz nascerem reuniões na França, país onde elas raramente se formam, e onde o governo dificilmente as tolera.

“Esta invasão geral, além de produzir uma viva impressão, tem altíssima importância. É necessário, pois, sem precipitação nem ideias preconcebida, verificar os fenômenos com boa-fé, até que venham a ser explicados, o que será feito um dia, se a Deus aprouver revelar-nos a natureza desse agente misterioso.”

Como se vê, o autor não é muito adiantado, mas, ao menos, não julga pelo que não sabe. Ele reconhece a existência dos fatos e sua causa primeira, mas não conhece seu modo de produção. Ele ignora os progressos da parte teórica da ciência e, a respeito, dá um conselho muito sábio, o de não fazer teorias aventurosas, à maneira que cada um se esforçava por fazer, pois foi assim que a maioria desses sistemas prematuros caíram ante experiências ulteriores que vieram contradizê-los.

Hoje temos uma teoria racional, na qual nenhum ponto foi admitido a título de hipótese, pois tudo é deduzido da experiência e da atenta observação dos fatos. Pode-se dizer que, a tal respeito, o Espiritismo tem sido estudado à maneira das ciências exatas.

Negada ontem, esta ciência não disse tudo, e ainda nos resta muito a aprender, mas disse o bastante para ser estabelecida em bases fundamentais e para se saber que esses fenômenos não saem da ordem dos fatos naturais. Eles foram qualificados como sobrenaturais e maravilhosos por falta de conhecimento da lei que os rege, assim como aconteceu com a maioria dos fenômenos da Natureza. Dando a conhecer essa lei, o Espiritismo restringe o círculo do maravilhoso em vez de ampliá-lo. Dizemos mais: Ele lhe desfere o último golpe. Os que falam de outro modo provam que não o estudaram.

Constatamos com satisfação que a ideia espírita faz sensíveis progressos no Rio de Janeiro, onde conta com numerosos representantes fervorosos e devotados. A pequena brochura O Espiritismo em sua expressão mais simples, publicada em português, não contribuiu pouco para ali espalhar os verdadeiros princípios da doutrina.


“Ao Sr. Redator do PROGRÈS COLONIAL


Senhor,

Conhecendo o vosso liberalismo, e também sabendo que vos ocupais de Espiritismo, tende a bondade de inserir em vosso próximo número a carta anexa, que foi dirigida ao Sr. Pe. de Régnon, deixando-vos a liberdade de fazer as reflexões que julgardes convenientes, no interesse da verdade.

Contando com a vossa imparcialidade, ouso pensar que me abrireis as colunas do vosso jornal, para todas as reclamações do gênero das que tenho a honra de vos enviar.

Sou, senhor, vosso humilde servo,

C.


Ao Sr. Pe. de Régnon

“Port-Louis, 26 de março de 1864.

“Sr. Padre,

“Em vossa conferência de quinta-feira última, 24 de março, atacastes o Espiritismo, e quero crer que o tenhais feito de boa-fé, posto os argumentos de que vos servistes contra ele talvez não tenham sido de inteira exatidão.

“É lamentável, de nossa parte, na condição de espírita bem convicto, que tenhais ido colhê-los fora da fonte de conhecimento positivo desta ciência. Estudando-o um pouco, teríeis sabido que repelimos, assim como vós, todas as comunicações emanadas de Espíritos grosseiros e enganadores, que com a menor experiência são facilmente reconhecidos, e que nós nos prendemos apenas àquelas que se apresentam de maneira clara, racional, e segundo as leis de Deus, que, vós o sabeis tanto quanto nós, em todos os tempos permitiu as manifestações espíritas. As Sagradas Escrituras aí estão como prova disso.

“Aliás, não negais a existência dos Espíritos, ao contrário, admitis apenas a dos maus. Eis a diferença existente entre nós.

“Nós temos certeza de que existem bons Espíritos, e de que seus conselhos, quando seguidos ─ e todo verdadeiro espírita não deixa de fazê-lo ─ conduzem mais almas a Deus e fazem muito mais prosélitos da religião do que imaginais. Mas para compreender e praticar esta ciência, bem como todas as outras, para começar é preciso instruir-se e conhecê-la a fundo.

“Assim, Sr. Padre, eu vos aconselho, primeiro em vosso interesse, depois no de todos os que têm a felicidade de vos ouvir, a ler uma das principais obras sobre o assunto, o Livro dos Espíritos, por eles ditada ao Sr. Allan Kardec, presidente da Sociedade Espírita de Paris, composta de gente séria e, em sua maioria, muito instruída.

“Aí vereis que só os ignorantes se deixam enganar por falsos nomes e palavras mentirosas, e que pelos frutos é muito fácil conhecer a árvore! Teria eu necessidade, aliás, de vos lembrar a 3ª epístola de São João, versículos 1, 2 e 3, sobre a maneira de provar os Espíritos?

“Sim, concordo, o Espiritismo é uma ciência que, assim como o que há de melhor no mundo, por vezes pode produzir grandes males, se exercida por aqueles que não a estudaram e a praticam ao acaso. Mas, então, vós, um homem prudente, deveis julgá-la sem conhecê-la?

“E nossa bela religião cristã, em nome da qual tão grande número de insensatos, de ignorantes e até mesmo de celerados cometeram tantos crimes e derramaram tanto sangue, deve ser julgada pelas ações loucas ou criminosas desses infelizes?

“Não, senhor padre, não é justo nem racional fazer um julgamento temerário de coisas sobre as quais não nos certificamos com antecedência. Deixai a superfície, ide ao fundo pelo estudo, e então podereis dele tratar com conhecimento de causa, e nós vos escutaremos com recolhimento, porque então sem dúvida estareis com a verdade, e nós não mais sorriremos dizendo baixinho para nós mesmos: ‘Ele fala do que ignora.’

“UM ESPÍRITA.”


Se o Espiritismo tem detratores, também tem defensores por toda parte, mesmo nas regiões mais afastadas.

O autor desta carta publicou em folhetins, nesse mesmo jornal, um romance muito interessante, cuja base é o Espiritismo, e que contribuiu poderosamente para a difusão destas ideias naquela região. Referir-nos-emos a isto em outra ocasião.


“Decididamente, o Espiritismo é uma coisa horrível, porque jamais nem ciência, nem doutrina herética, nem o próprio ateísmo levantaram contra si tão forte movimento no seio da Igreja, quanto ao Espiritismo. Todos os recursos imagináveis, leais ou não, foram postos em jogo, a princípio para abafá-lo, e depois, quando demonstrada a impossibilidade de liquidá-lo, para desnaturá-lo e apresentá-lo sob o negro aspecto de pecado. Pobre Espiritismo! Ele só pedia um lugarzinho ao sol para fazer que gratuitamente o mundo gozasse de seus benefícios. Ele não pedia a essas criaturas, que na qualidade de supostos discípulos do Cristo, do Homem-Amor, supõem trazer a palavra caridade inscrita em letras brilhantes em suas sobrepelizes, senão reconduzir ao bom caminho esses milhares de ovelhas que eles tinham sido incapazes de aí manter; não lhes pedia senão poder secundá-los em sua obra de devotamento, curando por uma fundada esperança os pobres corações roídos pela gangrena da dúvida, e esse pedido tão desinteressado, de tão pura intenção, foi respondido por um decreto de proscrição!

Na verdade, veem-se coisas estranhas neste mundo: Os mensageiros oficiais da caridade condenam mais de nove décimos dos homens porque eles escapam à sua influência, e condenam mais profundamente ainda os que querem salvar aqueles infelizes!

“Assim, sem sombra de dúvida, o Espiritismo é coisa muito culpável, porquanto é de tal modo combatido, e causa muita estranheza que uma doutrina tão perversa tenha conquistado tanto espaço em tão curto lapso de tempo. Mas o que deve parecer muito mais admirável é que esse abominável Espiritismo se tenha estabelecido tão solidamente e seja tão lógico, que todos os argumentos que lhe opõem, longe de fazê-lo desabar e de reduzi-lo a nada, longe mesmo de o abalar, ao contrário, vêm todos contribuir, por sua inanidade e manifesta impotência, para a sua solidificação e sua propagação.

Com efeito, é aos entraves que lhe quiseram suscitar que ele deve, em considerável parte, a rapidez de sua expansão, e as prédicas desenfreadas de certos adversários nossos certamente não auxiliaram pouco a sua generalização.

É assim que acontece na ordem das coisas. A verdade nada tem a temer de seus detratores, e são eles mesmos que involuntariamente contribuem para o seu triunfo.

O Espiritismo é um imenso foco de calor e de luz, e quem sopra sobre esse braseiro, além de infalivelmente queimar-se um pouco, não consegue outro resultado senão reavivá-lo ainda mais.

“Entretanto, as ordenações e as conferências parecem insuficientes para destruir o Espiritismo ─ estamos longe de negar essa patente insuficiência ─ assim, a Congregação romana acaba de pôr no índex todos os livros do Sr. Allan Kardec, livros que contêm o ensino universal dos Espíritos, aos quais todos nós, os espíritas, nos ligamos. Que nos permitam fazer a respeito as duas reflexões seguintes:

“Os livros espíritas em questão sem dúvida encerram, em toda a sua pureza, e com os desenvolvimentos que exige o estado atual do espírito humano, os ensinamentos e preceitos de Jesus, em quem os Espíritos reconhecem um Messias. Condenar esses livros, portanto, não é condenar, num mesmo golpe, as palavras do Cristo, e pôr esses livros no índex não é aí pôr, de certa forma, os Evangelhos, que estão de acordo conosco? Parece-nos que sim, mas é certo que não somos infalíveis como vós.

“Segunda reflexão: Esta medida que hoje tomam não é um tanto tardia? Por que esperar tanto tempo? Além de ser mais ou menos inexplicável (a menos que se creia que o Espiritismo vos pareça de tal modo verdadeiro e estejais de tal modo persuadidos de seu triunfo que durante muito tempo hesitastes em atacá-lo abertamente e de frente, e que um poderosíssimo interesse pessoal, pois não vos faremos a injúria de supor-vos ultra ignorantes, vos tenha induzido a fazê-lo, além de ser mais ou menos inexplicável, dizíamos nós, é ainda muito desajeitado. Com efeito, o Livro dos Espíritos, o Livro dos médiuns e a Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo estão atualmente nas mãos de milhares de pessoas, e duvidamos muito que a condenação da Congregação de Roma possa agora fazer com que se considere mau e abjeto o que todos julgaram grande e nobre.

“Seja como for, os livros espíritas foram postos no índex. Tanto melhor, porque muitos dos que ainda não os leram irão devorá-los! Tanto melhor, porque de dez pessoas que o percorrerem, pelo menos sete convencer-se-ão ou ficarão fortemente abaladas e desejosas de estudar os fenômenos espíritas. Tanto melhor, porque os nossos próprios adversários, vendo que seus esforços conduzem a resultados diametralmente opostos aos que esperavam, ligar-se-ão a nós, se eles possuírem a sinceridade, o desinteresse e as luzes que seu ministério comporta. Aliás, assim o quer a lei de Deus, porquanto nada no mundo pode ficar eternamente estacionário, mas tudo progride, e a ideia religiosa deve seguir o progresso geral, se não quiser desaparecer.

“Então, que nossos adversários continuem a sua cruzada. Eles já puseram em jogo as ordenações, os sermões, os cursos públicos, as influências ocultas e por vezes aparentemente vitoriosas, por causa do estado de dependência daqueles sobre os quais pesam tiranicamente; eles usaram o auto-de-fé, queimando publicamente nossos livros em Barcelona. Só tendo podido queimar alguns exemplares e vendo que eles substituídos em quantidade assombrosa, por fim os puseram no índex. Ah! Não sendo mais tolerada a inquisição, embora ela esteja longe de deixar de existir sob outra forma e com a ajuda das influências ocultas de que acabamos de falar, só lhes resta a excomunhão de todos os espíritas em massa, isto é, de notável porcentagem dos homens, e, em particular, de considerável parcela dos cristãos. (Não falamos senão dos espíritas confessos, pois inapreciável é o número dos que o são sem saber.)”


NOTA: Numa das sessões da Sociedade Espírita de Paris, em que se havia discutido a perturbação que geralmente se segue à morte, um Espírito manifestou-se espontaneamente à Sra. Costel, pela comunicação que se segue, que ele não assina:

Por que falais da perturbação? Por que essas palavras vãs? Sois sonhadores e utopistas. Ignorais completamente as coisas de que vos pretendeis ocupar. Não, senhores, não existe a perturbação, salvo talvez em vossos cérebros. Estou tão recentemente morto quanto possível, e vejo claro em mim, ao meu redor, em toda parte...

A vida é uma lúgubre comédia! Desajeitados os que se fazem retirar da cena antes de cair o pano... A morte é um terror, um castigo, um desejo, conforme a fraqueza ou a força dos que a temem, a desafiam ou a imploram. Para todos ela é uma amarga irrisão!...

A luz me ofusca e penetra como seta aguda a sutileza de meu ser... Castigaramme pelas trevas da prisão e pensaram castigar-me pelas trevas do túmulo, ou as sonhadas pelas superstições católicas.

Ah! Sois vós, senhores, que sofreis a escuridão, e eu, o degradado social, eu pairo acima de vós... Eu quero continuar eu mesmo!... Forte pelo pensamento, desdenho os avisos que ressoam ao meu redor... Vejo claro... Um crime! é uma palavra! O crime existe por toda a parte. Quando ele é praticado por massas de homens, glorificam-no; no particular, ele é odiado. Absurdo!

Não quero ser lamentado... Nada peço... Eu me basto e saberei muito bem lutar contra essa luz odiosa.

AQUELE QUE ONTEM ERA UM HOMEM


Tendo sido analisada esta comunicação na sessão seguinte, foi reconhecido, no próprio cinismo da linguagem, um grave ensinamento, e se viu na situação desse infeliz uma nova fase do castigo que atinge os culpados.

Com efeito, enquanto uns são mergulhados nas trevas ou num isolamento absoluto, outros suportam, durante longos anos, as angústias de sua última hora, ou ainda se julgam deste mundo. A luz brilha para este; seu Espírito goza da plenitude de suas faculdades; ele sabe perfeitamente que está morto, e de nada se lamenta; ele não pede qualquer assistência, e ainda desafia as leis divinas e humanas.

Será, então, que ele escaparia da punição? Não. O que acontece é que a justiça divina se realiza sob todas as formas, e o que para uns constitui alegria, para outros é um tormento. Essa luz é o seu suplício contra o qual ele se obstina, e, malgrado o seu orgulho, ele o confessa quando diz: “Eu me basto e saberei muito bem lutar contra essa luz odiosa”, e nesta outra frase: “A luz me ofusca e penetra, como seta aguda, a sutileza de meu ser.” As palavras sutileza de meu ser são características. Ele reconhece que seu corpo é fluídico e penetrável pela luz, da qual não pode subtrair-se, e essa luz o traspassa como seta aguda.

Solicitados a dar sua apreciação sobre o assunto, nossos guias ditaram as três comunicações seguintes, que merecem séria atenção:

(MÉDIUM: SR. A. DIDIER)


Há provações sem expiação, como há expiações sem provação. Evidentemente, na erraticidade, do ponto de vista das existências, os Espíritos estão inativos e à espera. Contudo, podem expiar, tendo em vista que o seu orgulho, bem como a tenacidade formidável e intratável de seus erros não os retêm, no momento de sua ascensão progressiva. Tendes um exemplo terrível na última comunicação, relativamente ao criminoso que se debate contra a justiça divina que o constringe, depois da dos homens. Neste caso, então, a expiação, ou antes, o sofrimento fatal que os oprime, em vez de beneficiá-los e de lhes fazer sentir a profunda significação de suas penas, exalta-os na revolta, e lhes faz soltar esses murmúrios que as Escrituras, em sua poética eloquência, chamam de ranger de dentes, imagem, por excelência, símbolo do sofrimento abatido mas insubmisso, perdida na dor, mas cuja revolta ainda é excessivamente grande para recusar-se a reconhecer a verdade da pena e a verdade da recompensa!

Os grandes erros muitas vezes, e mesmo quase sempre, se prolongam no mundo dos Espíritos. Do mesmo modo, as grandes consciências criminosas. Ser dono de si mesmo, a despeito de tudo, e pavonear-se diante do infinito, assemelha-se a essa cegueira do homem que contempla as estrelas e que as toma por arabescos de um teto, como acreditavam os gauleses do tempo de Alexandre.

Há o infinito moral! Miserável é aquele, ínfimo é aquele que, sob o pretexto de continuar as lutas e as fanfarronadas abjetas da Terra, não vê mais longe no outro mundo do que aqui embaixo! A esse a cegueira, o desprezo dos outros, a egoísta e mesquinha personalidade e a estagnação do progresso! É muitíssimo certo, ó homens, que existe um acordo secreto entre a imortalidade de um nome puro deixado na Terra, e a imortalidade que guardam realmente os Espíritos em suas provações sucessivas.

LAMENNAIS


OBSERVAÇÃO: Para compreender o sentido da frase. “Há provações sem expiação e expiações sem provação” é necessário entender como expiação o sofrimento que purifica e lava as manchas do passado. Depois da expiação, o Espírito está reabilitado. O pensamento de Lamennais é o seguinte: Conforme as vicissitudes da vida sejam ou não acompanhadas pelo arrependimento das faltas que as ocasionaram, pelo desejo de torná-las aproveitáveis para seu próprio melhoramento, haverá ou não haverá expiação, isto é, reabilitação. Assim, os maiores sofrimentos podem não ter proveito para aquele que os suporta, se tais sofrimentos não o tornarem melhor; se eles não o elevarem acima da matéria; se ele não vê nisso a mão de Deus; se, enfim, eles não o fizerem dar um passo à frente, porque ele terá que recomeçar em condições ainda mais penosas.

Deste ponto de vista, dá-se o mesmo com as penas sofridas após a morte. O Espírito endurecido as sofre sem ser tocado pelo arrependimento. Eis por que ele pode prolongá-las por sua própria vontade; é castigado, mas não se arrepende.

(MÉDIUM: SR. D’AMBEL)


Precipitar um homem nas trevas ou em ondas de luz: o resultado não será o mesmo? Num caso como no outro, ele nada vê do que o cerca, e até habituar-se-á mais rapidamente à sombra do que à tripla claridade elétrica, na qual pode estar submerso. Assim, o Espírito que se comunicou na última sessão bem exprime a verdade de sua situação quando exclama: “Oh! Eu me basto e saberei muito bem lutar contra essa luz odiosa!” Com efeito, essa luz é tanto mais terrível e tanto mais medonha porquanto o atravessa completamente e torna visíveis e aparentes os seus mais secretos pensamentos. Aí está um dos lados mais duros de seu castigo espiritual. Ele se acha, por assim dizer, internado na casa de vidro que pedia Sócrates, e aí está ainda um ensinamento, porque o que teria sido a alegria e o consolo do sábio torna-se a punição infamante e contínua do malvado, do criminoso, do parricida, assombrado em sua própria personalidade.

Compreendeis, meus filhos, a dor e o terror que devem tolher aquele que durante uma existência sinistra se comprazia em combinar, em maquinar os mais tristes malefícios no fundo de seu ser, onde se refugiava como uma fera em sua caverna, e que hoje se vê expulso desse refúgio íntimo, onde se subtraía aos olhares e à investigação dos contemporâneos? Agora sua máscara de impassibilidade lhe é arrancada, e cada um de seus pensamentos se reflete sucessivamente em sua fronte!

Sim, de agora em diante, nenhum repouso, nenhum asilo para esse formidável criminoso! Cada pensamento mau, e Deus sabe se sua alma os exprime, se trai fora e dentro dele, como num choque elétrico superior. Ele quer fugir da multidão, mas a luz odiosa o penetra continuamente. Ele quer fugir, foge numa carreira desabalada e desesperada, através dos espaços incomensuráveis, e por toda parte a luz! Por toda parte os olhares que nele mergulham! Ele se precipita novamente, em busca da sombra, da noite, mas a sombra e a noite não mais existem para ele. Ele chama a morte em seu auxílio, mas a morte não passa de uma palavra sem sentido. O infeliz foge sem parar! Ele caminha para a loucura espiritual, terrível castigo, dor horrível, onde se debaterá consigo mesmo para se desembaraçar de si próprio, porque esta é a lei suprema além da Terra: É o culpado que se transforma no mais inexorável castigo para si mesmo.

Quanto tempo durará isto? Até à hora em que sua vontade, enfim vencida, curvar-se sob a pungente pressão do remorso, e na qual sua fronte soberba humilharse ante suas vítimas apaziguadas e ante os Espíritos de justiça.

Notai a alta lógica das leis imutáveis, pois ele ainda cumprirá o que escrevia nessa altiva comunicação, tão clara, tão lúcida e tão tristemente cheia de si próprio que ele deu na sexta-feira última, entregando-se a um ato de sua própria vontade.

O ESPÍRITO PROTETOR DO MÉDIUM

(MÉDIUM: SR. COSTEL)


A justiça humana não privilegia a individualidade dos seres que castiga. Medindo o crime pelo crime em si, ela fere indistintamente os que o cometeram, e a mesma pena atinge o culpado sem distinção de sexo, e seja qual for a sua educação. A justiça divina procede diversamente. As punições correspondem ao grau de adiantamento dos seres aos quais são aplicadas. A igualdade do crime não constitui igualdade entre os indivíduos, porquanto dois homens culpados no mesmo grau podem ser separados pela distância das provações, que mergulham um na opacidade intelectual dos primeiros círculos iniciadores, ao passo que o outro, tendo-os ultrapassado, possui a lucidez que liberta o Espírito da perturbação. Então não são mais as trevas que castigam, mas a acuidade da luz espiritual. Ela atravessa a inteligência terrena e o faz experimentar a angústia de uma ferida exposta.

Os seres desencarnados perseguidos pela representação material de seu crime sofrem o choque da eletricidade física. Eles sofrem pelos sentidos. Aqueles que já estão desmaterializados pelo Espírito sentem uma dor muito superior que aniquila nas suas vagas amargas a lembrança dos fatos, para não deixar subsistir senão o conhecimento de suas causas.

Pode, então, o homem, malgrado a criminalidade de suas ações, possuir um avanço anterior e, ao passo que as paixões o faziam agir como um bruto, suas faculdades aguçadas o elevam acima da espessa atmosfera das camadas inferiores. A ausência de ponderação, de equilíbrio entre o progresso moral e o progresso intelectual produz as anomalias tão frequentes nos períodos de materialismo e de transição.

A luz que tortura o Espírito culpado é, portanto, o raio espiritual inundando de claridade os recantos secretos de seu orgulho e lhe descobrindo a inutilidade de seu ser fragmentário.

São estes os primeiros sintomas e as primeiras angústias da agonia espiritual que anunciam a separação ou dissolução dos elementos intelectuais materiais que compõem a primitiva dualidade humana, e devem desaparecer na grande unidade do ser acabado.

JEAN REYNAUD


OBSERVAÇÃO: Estas três comunicações, recebidas simultaneamente, se complementam umas pelas outras, e apresentam o castigo sob novo aspecto eminentemente filosófico, um pouco mais racional que as chamas do inferno, com suas cavernas guarnecidas de navalhas. É provável que os Espíritos, querendo tratar da questão por meio de um exemplo, tenham provocado, com esse objetivo, a comunicação do Espírito culpado.


Notícias bibliográficas.

A educação materna, conselhos às mães de família.*

O opúsculo é produto de instruções mediúnicas, formando um conjunto completo, ditadas à Sra. Collignon, de Bordeaux, pelo Espírito que se assina Étienne, desconhecido do médium. Essas instruções, antes publicadas em artigos destacados pelo jornal le Sauveur, foram reunidos em brochura.

Temos a satisfação de aprovar esse trabalho sem reservas, tão recomendável pela forma, quanto pelo fundo: estilo simples, claro, conciso, sem ênfase nem palavras para encher vazios de sentido, pensamentos profundos, de uma lógica irreprovável, é bem a linguagem de um Espírito elevado e não esse estilo verboso de Espíritos que julgam compensar o vaziodas idéias pela abundância das palavras. Não tememos fazer estes elogios porque sabemos que a Sra. Collignon não os tomará para si e que seu amor-próprio não será excitado, assim como não se formalizaria com a mais severa crítica.

Nesse escrito, a educação é encarada sob seu verdadeiro ponto de vista em relação ao desenvolvimento físico, moral e intelectual da criança, considerado desde o berço até a sua situação no mundo. As mães Espíritas, melhor que as outras, apreciarão a sabedoria dos conselhos que encerra, pelo que lhes recomendamos como uma obra digna de toda a sua atenção.

A brochura é completada por um pequeno poema: O Corpo e o Espírito, também mediúnico, que mais de um autor de renome subscreveria sem receio. Eis o começo:

“Morfeu tinha mergulhado meus sentidos no sono.

“Meu Espírito, liberto do pesado aparelho,

“Quis emancipar-se e vogar no espaço,

“Abandonando seu corpo, como o soldado o seu posto.

“Como um prisioneiro, que geme nas algemas,

“Enfim livre, quis elevar-se no espaço.

“Era uma lembrança, um capricho, um mistério,

“Que me levava o Espírito a deixar a terra?

“Não saberia dizê-lo e ele, de regresso,

“Responde à pergunta com evasivas.

“Logo compreendi a razão de sua astúcia

“E me zanguei, pois não gosto que me enganem.

“Ao menos me direis, Espírito caprichoso,

“O que viste nesse passeio pelo céu?

“— Para te agradar, algo devo dizer-te;

“Do contrário o carcereiro, posto mau humor,

“Faria ao preso um grosseiro sermão

“E o pobre cativo ficaria pior...

“Sabe, pois. . . Esperai. E mesmo a história

“Que me ides contar? Ó sim, tu podes crer.

“Sabe, pois, que outrora, no mundo dos Espíritos

“Eu deixei os pais e numerosos amigos:

“Queria revê-los: pois o exílio na terra

“Parece que não foi feito apenas para agradar!

“Aproveitando o sono, que te prendia no leito,

“Lá deixei o corpo e logo, só Espírito,

“Transpus os degraus que separam os mundos

“Fazendo o seu percurso em quase dois segundos.

“Devia ser ligeiro, pois o menor atraso

“Iria fazer-te mal. Ora, se por acaso

“Me tivesse esquecido nesse grande percurso,

“Em vez do meu corpo acharia um cadáver,

“E eu quis evitar semelhante remorso.

“Sabia que ficando eu cometeria um crime,

“Pois só Deus pode romper a nossa ligação,

“— Obrigado pela lembrança, caro Espírito dedicado;

“Se não é menos certo que teria morrido

“Se a menor demora... Ah! palavra de corpo honesto,

“Até sinto que os cabelos se arrepiam!


* Broch. In-8. Paris: Ledoyen, Palais Royal, galerie d'Orléans, n.° 31. — Bordeaux, chez Ferret, 15, Fossés-de-l'Intendance.

O ESPIRITISMO NA SUA EXPRESSÃO MAIS SIMPLES , PELO SR. ALLAN KARDEC, EDIÇÃO EM LÍNGUA RUSSA

Impresso em Leipzig, por Baer & Hermann. Em Paris: Ledoyen, Palais-Royal; Didier & Cie., 35, Qual des Augustins. Escritório da Revista Espírita.


Aviso. O Dr. Chauvaux, presidente da Sociedade Espírita de Marselha, pede anunciemos que a sua sede é à Rue du Petit-Saint



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