Agosto
“A epidemia demoníaca que desde 1857 reina no burgo de Morzine e nos casebres vizinhos, situados entre as montanhas da Alta Savoia, ainda não cessou a sua devastação. O governo francês, desde que a Savoia lhe pertence, preocupou-se com o caso. Enviou ao local homens especializados, inteligentes e capazes, inspetores dos hospícios de alienados, etc., a fim de estudar a natureza e observar a marcha dessa doença. Eles tomaram algumas medidas, tentaram o deslocamento e transportaram as moças doentes para Chambéry, Annecy, Thoron, etc., mas os resultados dessas tentativas não foram satisfatórios. Malgrado o tratamento médico reputado conveniente, as curas foram pouco numerosas, e quando as moças voltaram para casa, recaíram no mesmo estado de sofrimento.
Depois de inicialmente haver atingido as crianças e as mocinhas, a epidemia estendeu-se às mães de família e às senhoras idosas. Poucos homens lhe sentiram a influência, contudo, custou a vida de um. Esse infeliz meteu-se no estreito espaço entre o fogão e a parede, de onde dizia não poder sair e ali ficou um mês, sem se alimentar. Morreu de esgotamento e inanição, vítima de sua imaginação ferida.
“Os enviados do governo francês fizeram relatórios, num dos quais o Sr. Constant, entre outras coisas, declarava que o pequeno número de curas realizadas naquela população eram devidas ao magnetismo por mim empregado em Genebra, em moças e senhoras que me haviam trazido em 1858 e 1859.
“Nossos leitores sabem que esse flagelo, atribuído pelos bons camponeses de Morzine e, o que é mais desagradável, por seus guias espirituais, ao poder do demônio, se manifesta naqueles que são tomados por convulsões violentas acompanhadas de gritos, de dores no estômago e gestos da mais impressionante ginástica, sem falar das blasfêmias e de outros processos escandalosos, pelos quais os doentes se consideram culpados quando os obrigam a entrar numa igreja.
“Conseguimos curar vários desses doentes, que não sofreram outros ataques enquanto residiram em locais distantes das influências perniciosas do contágio e dos espíritos impressionados de sua região. Mas em Morzine o horrível mal não cessou de fazer devastações entre essa população infeliz. Ao contrário, o número das suas vítimas continuou crescendo. Em vão prodigalizaram preces e exorcismos; em vão levaram os doentes para hospitais de várias cidades distantes. O flagelo, que em geral ataca mocinhas cuja imaginação é mais viva, se encarniçou contra a sua presa, e as únicas curas constatadas foram as operadas por nós, das quais fizemos um relato em nosso jornal.
“Enfim, baldos de meios, quiseram tentar um grande golpe. Monsenhor Maguin, bispo de Annecy, mandou anunciar, há pouco tempo, que iria a Morzine, tanto para crismar os habitantes que ainda não haviam recebido esse sacramento quanto para ensinar os meios de vencer a terrível doença. A boa gente da aldeia esperava maravilhas dessa visita.
“Ela ocorreu no sábado, 30 de abril, e no domingo, 1º de maio, e eis as circunstâncias que a marcaram:
“No sábado, pelas quatro horas, o prelado aproximou-se da aldeia. Ele estava a cavalo, acompanhado por grande número de padres. Tinham procurado reunir os doentes na Igreja, e alguns tinham ido à força. Diz uma testemunha ocular que ‘A partir do momento em que o bispo pisou em terras de Morzine, os possessos, sentindo que ele se aproximava, foram tomados de convulsões as mais violentas, e particularmente aqueles que eram mantidas na igreja soltavam gritos e urros que nada tinham de humano. Todas as moças que em diversas épocas tinham sido atingidas pela doença recaíram, e muitas delas, que há cinco anos não haviam sofrido nenhum ataque, foram vitimadas pelo mais medonho paroxismo dessas crises horríveis.’
“O próprio bispo empalideceu ao ouvir os urros que acolheram a sua chegada. Não obstante, continuou a avançar para a igreja, malgrado a vociferação de alguns doentes que haviam escapado das mãos de seus guardas para se atirarem à sua frente e injuriá-lo.
“Ele apeou-se à porta do templo e entrou com dignidade. Apenas acabou de entrar, a desordem redobrou. Então foi uma cena verdadeiramente infernal.
“As possessas, cerca de setenta, com um único rapaz, praguejavam, rugiam, pulavam em todos os sentidos. Isto durou muitas horas, e quando o prelado quis fazer o crisma, o furor redobrou, se isto é possível. Eles tiveram que arrastá-las para junto do altar. Sete ou oito homens tiveram que reunir seus esforços para vencer a resistência de algumas, com ajuda dos policiais.
“O bispo deveria partir às quatro horas, mas às sete da noite ainda estava na igreja, onde não lhe puderam trazer três doentes. Conseguiram arrastar duas, arquejantes, com espuma na boca e blasfêmias nos lábios, aos pés do prelado. A última resistiu a todos os esforços. O bispo, vencido pela fadiga e pela emoção, teve que renunciar a lhe impor as mãos. Ele saiu da igreja tremendo, desequilibrado, com as pernas cobertas de contusões recebidas das possessas enquanto elas se agitavam sob sua bênção.
“Ele saiu da aldeia deixando aos habitantes boas palavras, mas sem lhes esconder a profunda impressão de estupor que havia experimentado em presença de um mal que não podia imaginar tão grande. Terminou confessando ‘que não se tinha sentido bastante forte para conjurar a chaga que tinha vindo curar e prometendo voltar o quanto antes, munido de poderes maiores.’
“Não fazemos hoje nenhuma reflexão. Limitamo-nos a relatar esses fatos deploráveis. Talvez no próximo número digamos tudo quanto para nós eles representaram de penoso.”
“Ocupam-se muito em Annecy de um incidente, tão doloroso quão imprevisto, que assinalou a viagem de Monsenhor Maguin, nosso digno prelado. Todos conhecem a triste e singular doença que há anos aflige a comuna de Morzine, à qual não se sabe que nome dar. A Ciência aí se perde. Certo público caracterizou essa doença, que aflige principalmente as mulheres, chamando de possessos os que por ela são atingidos. Muitos habitantes da comuna, com efeito, estão persuadidos de que um malefício foi lançado sobre essa localidade.
“Lembram-se também que em 1862, certo número de pessoas atingidas por essa estranha doença, que produz todos os efeitos da loucura furiosa, sem lhe ter o caráter, foram espalhadas em diversos hospitais, em vários pontos da França, e voltaram perfeitamente curadas. Este ano a doença afetou outras pessoas e há algum tempo tomou proporções apavorantes.
“Foi nestas circunstâncias que o Monsenhor Maguin, só escutando a sua caridade, fez a sua visita pastoral a Morzine, e foi no momento em que ele administrava o crisma que de repente uma crise se apoderou de certo número desses infelizes que assistiam à cerimônia ou que dela participavam. Então houve um terrível escândalo na igreja.
“Os detalhes dessa cena são muito aflitivos para serem relatados. Limitar-me-ei a dizer que a administração superior comoveu-se com esse triste caso e que um destacamento de trinta homens da infantaria já foi mandado para lá. Sei de boa fonte que esse destacamento será duplicado e comandado por um oficial superior, encarregado de minuciosas instruções. Desnecessário dizer que outras medidas serão tomadas, tais como, por exemplo, o envio de médicos especialistas encarregados de estudar a doença. A força armada terá por missão proteger as pessoas.”
A Ciência aí se perde é uma confissão de impotência. Então, o que farão os médicos? Já não enviaram alguns muito capacitados? Dizem que vão mandar especialistas. Mas, como estabelecer sua especialidade numa afecção cuja natureza não se conhece, e na qual a Ciência se perde?
Concebe-se a especialidade dos oculistas para as afecções dos olhos e dos toxicologistas nos casos de envenenamento, mas aqui, em que categoria serão tomados? Entre os alienistas? Tudo bem, se for demonstrado que é uma afecção mental, mas os próprios alienistas fracassaram. Eles não estão de acordo nem quanto à causa nem quanto ao tratamento. Ora, se a Ciência aí se perde, o que é uma grande verdade, os alienistas não são mais especialistas que os cirurgiões. É verdade que lhes vão juntar uma força armada, mas já empregaram esse meio sem sucesso. Duvidamos muito que desta vez haja sucesso.
Se a Ciência falha, portanto, é que ela não está no caminho certo.O que há nisto de estranho? Tudo revela uma causa moral, e enviam homens que só acreditam na matéria. Eles procuram na matéria e aí nada encontram, o que prova superabundantemente que eles não procuram onde é preciso. Se se querem médicos mais especializados, que os escolham entre os espiritualistas e não entre os materialistas. Pelo menos aqueles poderão compreender que ali possa haver alguma coisa fora do organismo.
A religião não foi mais feliz. Ela usou suas munições contra os diabos, sem poder chamá-los à razão. É que então os diabos são os mais fortes, a menos que não sejam diabos. Os constantes insucessos, em casos semelhantes, provam uma de duas coisas: ou que ela não está certa, ou que é vencida por seus inimigos.
O mais claro de tudo isto é que nada do que empregaram deu resultado, e não terão melhor resultado enquanto se obstinarem em não buscar a verdadeira causa onde ela está. Um estudo atento dos sintomas demonstra, com a mais clara evidência, que a causa está na ação do mundo invisível sobre o mundo visível, ação que é a fonte de mais afecções do que se pensa, e contra as quais a Ciência falha porque ela combate o efeito e não à causa. Numa palavra, é o que o Espiritismo designa pelo nome de obsessão, levada ao mais alto grau, isto é, de subjugação e de possessão. As crises são efeitos consecutivos. A causa é o ser obsessor. É, portanto, sobre esse ser que se deve agir, como nas convulsões ocasionadas pelos vermes, se age sobre os vermes.
Dirão que o sistema é absurdo. Absurdo para os que nada admitem fora do mundo tangível, mas muito positivo para os que constataram a existência do mundo espiritual e a presença de seres invisíveis em torno de nós. Aliás, o sistema é baseado na experiência e na observação, e não numa teoria preconcebida. A ação de um ser invisível malévolo foi constatada numa porção de casos isolados, tendo completa analogia com os fatos de Morzine, de onde é lógico concluir que a causa é a mesma, já que os efeitos são semelhantes. A diferença está apenas na quantidade. Todos os sintomas, sem exceção, observados nos doentes daquela localidade, o foram nos casos particulares de que falamos. Ora, considerando-se que foram libertados os doentes atingidos pelo mesmo mal, sem exorcismos, sem medicamentos e sem polícia, o que se faz alhures poderia ser feito em Morzine.
Se assim é, perguntarão, por que os meios espirituais empregados pela Igreja são ineficazes?
Eis a razão:
A Igreja acredita nos demônios, isto é, numa categoria de seres de uma natureza perversa e votados eternamente ao mal, e por isso mesmo imperfectíveis. Com esta ideia, ela não procura melhorá-los. O Espiritismo, ao contrário, reconheceu que o mundo invisível é composto de almas ou Espíritos dos homens que viveram na Terra, e que, após a morte, povoam o espaço. Entre eles há bons e maus, como entre os homens. Dos que se compraziam, em vida, em fazer o mal, muitos se comprazem ainda, após a morte. Entretanto, pelo fato de pertencerem à Humanidade, eles estão subordinados à Lei do Progresso e podem melhorar-se. Portanto, eles não são demônios, no sentido da Igreja, mas Espíritos imperfeitos.
Sua ação sobre os homens se exerce tanto sobre o físico quanto sobre o moral. Daí uma porção de afecções que não têm sede no organismo, loucuras aparentes que são refratárias a qualquer medicação. É um novo ramo da patologia, que se pode designar pelo nome de patologia espiritual. A experiência ensina a distinguir os casos desta categoria daqueles que pertencem à patologia orgânica.
Não nos propomos a descrever o tratamento das afecções desse gênero, porque já foi indicada alhures. Limitar-nos-emos a lembrar que consiste numa tríplice ação: A ação fluídica que liberta o perispírito do doente da pressão do Espírito malévolo; o ascendente exercido sobre este último pela autoridade que sobre ele dá a superioridade moral; e a influência moralizadora dos conselhos que se lhe dá.
A primeira é simples acessório das duas outras. Sozinha ela é insuficiente, porque se momentaneamente se chega a afastar o Espírito, nada o impede de voltar à carga. É a fazê-lo renunciar voluntariamente a seus maus propósitos que a gente se deve aplicar, moralizando-o. É uma verdadeira educação a fazer, que exige tato, paciência, devotamento e, acima de tudo, uma fé sincera. Prova a experiência, pelos resultados obtidos, o poder deste meio, mas também demonstra que em certos casos é necessário o concurso simultâneo de várias pessoas unidas na mesma intenção.
Ora, o que faz a Igreja em semelhantes casos? Convicta de que trata com demônios incorrigíveis, ela não se ocupa absolutamente com a sua melhora. Ela acredita que os aterroriza e os afasta por meio dos signos, das fórmulas e dos aparelhos de exorcismo, do que eles se riem e pelo que são mais excitados a redobrar a malícia, como se constatou todas as vezes que tentaram exorcizar os lugares em que se produzem barulhos e perturbações. É um fato verificado pela experiência que os signos e os atos exteriores nenhum poder têm sobre eles, ao passo que foram vistos os mais endurecidos e os mais perversos cederem a uma pressão moral e voltarem aos bons sentimentos. Então, tem-se a dupla satisfação de livrar o obsedado e trazer a Deus uma alma transviada.
Talvez perguntem por que os espíritas, que estão convencidos da causa do mal e dos meios de combatê-lo, não foram a Morzine para ali operar milagres. Para começar, os espíritas não fazem milagres. A ação curativa que se pode exercer em semelhantes casos nada tem de maravilhoso ou de sobrenatural, porquanto ela repousa numa lei da Natureza, a das relações entre o mundo visível e o mundo invisível, lei que, dando a razão de certos fenômenos incompreendidos por falta de conhecimento, vem estreitar os limites do maravilhoso, em vez de alargá-los. Em segundo lugar, deve-se perguntar se o seu concurso seria aceito; se não teriam encontrado uma oposição sistemática; se, longe de serem ajudados, eles não teriam sido entravados pelas próprias pessoas que fracassaram; se não teriam sido insultados e maltratados por uma população superexcitada pelo fanatismo, acusados de feitiçaria junto aos próprios doentes, e de agirem em nome do diabo, como se viram provas em certas localidades.
Nos casos individuais isolados, os que se dedicam ao alívio dos aflitos geralmente são ajudados pela família e pela vizinhança, muitas vezes pelos próprios doentes, sobre cujo moral devem atuar por meio de palavras boas e encorajadoras, que devem excitar à prece. Semelhantes curas não se obtêm instantaneamente. Os que as empreendem necessitam de calma e de profundo recolhimento. Nas circunstâncias atuais, essas condições seriam possíveis em Morzine? É mais do que duvidoso. Quando vier o momento de deter o mal, Deus o proverá.
Aliás, os fatos de Morzine e sua continuação têm sua razão de ser, do mesmo modo que as manifestações do mesmo gênero em Poitiers. Eles se multiplicarão, quer isolada, quer coletivamente, a fim de convencer da impotência dos meios até hoje empregados para lhes pôr um termo, e de forçar a incredulidade a reconhecer, enfim, a existência de um poder extra-humano.
Para todos os casos de obsessão, de possessão e de quaisquer manifestações desagradáveis, chamamos a atenção para o que diz a respeito o Livro dos médiuns, no capítulo da obsessão; para os artigos da Revista relativos a Morzine, e relatados acima; para os nossos artigos de fevereiro, março e junho de 1864, relativos à jovem obsedada de Marmande; enfim, para os números 325 a 335 da Imitação do Evangelho. Aí serão encontradas as necessárias instruções para se guiarem em circunstâncias análogas.
Vários assinantes testemunharam o seu pesar por não haverem encontrado, em nossa Imitação do Evangelho segundo o Espiritismo, uma prece especial, para uso habitual, para a manhã e a noite.
Faremos notar que as preces contidas nessa obra não constituem um formulário que para ser completo deveria ter que encerrar um número muito maior. Elas fazem parte das comunicações dadas pelos Espíritos; nós as reunimos no capítulo consagrado ao exame da prece, como adicionamos a cada um dos outros capítulos as comunicações que aos mesmos poderiam referir-se. Evitando de propósito as da manhã e da noite, quisemos tirar de nossa obra o caráter litúrgico, por isso nos limitamos às que têm uma relação mais direta com o Espiritismo. As outras, cada um poderá encontrar entre as de seu culto particular. Nada obstante, para atender ao desejo que nos é expresso, damos a seguir a que se nos afigura responder melhor ao objetivo que se propõe. Contudo a precedemos de algumas observações, para que melhor se compreenda o seu alcance.
Na Imitação, nº 274, fizemos ressaltar a necessidade das preces inteligíveis. Aquele que ora sem compreender o que diz, habitua-se a ligar mais valor às palavras do que aos pensamentos; para ele as palavras é que são eficazes, ainda que o coração não participe. Assim, muitos se julgam quites quando recitaram algumas palavras que os dispensam de se reformarem. É fazer da Divindade uma ideia estranha, acreditar que ela se satisfaz com palavras, mais do que com atos que atestam um melhoramento moral.
Eis, aliás, a respeito deste assunto, a opinião de São Paulo:
“Se eu não entendo o que significam as palavras, serei um bárbaro para aquele a quem falo, e aquele que me fala será para mim um bárbaro. Se eu oro numa língua que não compreendo, meu coração ora, mas meu entendimento fica sem fruto. Se louvais apenas com o espírito, como é que um homem desses que não entendem senão sua própria língua dirá Amen, no final de vossa ação de graças, considerandose que ele não compreende o que dizeis? Isto não significa que vossa ação de graças não é boa, mas os outros não são edificados.” (São Paulo, 1ª epístola aos Coríntios, cap. XIV, versículos 11, 14, 16 e 17).
É impossível condenar de maneira mais formal e mais lógica o uso das preces ininteligíveis. Pode-se admirar que seja tão pouco levada em conta a autoridade de São Paulo neste assunto, ao passo que ela é tantas vezes invocada sobre outros pontos. Outro tanto poder-se-ia dizer da maioria dos escritores sacros, considerados como luzes da Igreja, e cujos preceitos todos estão longe de ser postos em prática.
Uma condição essencial da prece é, pois, segundo São Paulo, ser inteligível, para que possa falar ao nosso espírito. Para isto não basta que seja dita em língua compreendida por aquele que ora, porquanto há preces em língua vulgar que não dizem muito mais ao pensamento do que se fossem ditas em língua estrangeira, e que, por isso mesmo, não vão ao coração, porque as raras ideias que elas encerram são frequentemente abafadas pela superabundância de palavras e pelo misticismo da linguagem.
A principal qualidade da prece é ser clara, simples e concisa, sem fraseologia inútil, nem luxo de epítetos, que não passam de vestimentas de lantejoulas. Cada palavra deve ter o seu alcance, despertar um pensamento, mover uma fibra, numa palavra, deve fazer refletir. Só com esta condição a prece pode atingir o seu objetivo, do contrário não passa de ruído. Vede, também, com que ar distraído e com que volubilidade elas são ditas na maior parte do tempo! Veem-se os lábios se movendo, mas, pela expressão da fisionomia e pelo tom da voz se reconhece um ato maquinal, puramente exterior, ao qual a alma fica indiferente.
O mais perfeito modelo de concisão, no caso da prece, é, sem contradita, a Oração dominical, verdadeira obra prima de sublimidade em sua simplicidade. Sob a mais reduzida forma, ela resume todos os deveres do homem para com Deus, para consigo mesmo e para com o próximo. Contudo, em razão de sua própria brevidade, o sentido profundo encerrado nas poucas palavras de que ela se compõe escapa à maioria; os comentários já feitos a respeito nem sempre estão presentes à memória, ou mesmo são desconhecidos pela maior parte das pessoas, por isto geralmente ela é dita sem que o pensamento seja direcionado à aplicação de cada uma de suas partes. Dizem-na como uma fórmula cuja eficácia é proporcional ao número de vezes que é repetida. Ora, é quase sempre um dos números cabalísticos três, sete ou nove, tirados da antiga crença na virtude dos números, e em uso nas operações de magia. Pensai ou não penseis no que dizeis, mas repeti a prece tantas vezes, que isto basta. Agora que o Espiritismo repele expressamente toda eficácia atribuída às palavras, aos signos e às fórmulas, a Igreja acusa-o de ressuscitar as velhas crenças supersticiosas.
Todas as religiões antigas e pagãs tiveram sua língua sagrada, língua misteriosa, apenas inteligível aos iniciados, mas cujo sentido verdadeiro era oculto ao vulgo, que a respeitava tanto mais quanto menos a compreendia. Isto podia ser aceito na época da infância intelectual das massas, mas hoje, que elas estão espiritualmente emancipadas, as línguas místicas não mais têm razão de ser e constituem um anacronismo; elas querem ver tão claro nas coisas da religião quanto nas da vida civil; não se pede mais para crer e orar, mas se quer saber por que se crê e o que se pede orando.
O latim, de uso habitual nos primeiros tempos de Cristianismo, ficou sendo para a Igreja a língua sagrada, e é por um resto do antigo prestígio ligado a essas línguas que a maioria dos que não o sabem dizem a Oração dominical nessa língua, de preferência à sua própria. Dir-se-ia que dão tanto mais valor à coisa quanto menos a compreendem. Por certo tal não foi a intenção de Jesus quando a ditou, e tal também não foi o pensamento de São Paulo, quando disse: “Se eu oro numa língua que não compreendo, meu coração ora, mas meu entendimento fica sem fruto.” Ainda se, por falta de inteligência, o coração orasse sempre, haveria apenas meio mal, entretanto, infelizmente, muitas vezes o coração não ora mais que o espírito. Se o coração realmente orasse, não se veria tanta gente, entre aqueles que rezam muito, aproveitar tão pouco, não ser nem mais benevolentes nem mais caridosos nem menos maledicentes para com o próximo.
Feita esta ressalva, diremos que a melhor prece matinal e da noite é, sem contradita, a Oração dominical, dita com inteligência, de coração e não apenas com os lábios. Mas, para suprir o vago que a sua concisão deixa no pensamento, aqui acrescentamos, a conselho e com a assistência dos bons Espíritos, um desenvolvimento a cada proposição.
Conforme as circunstâncias e o tempo disponível, pode, pois, dizer-se a Oração dominical simples ou com os comentários. Também se podem acrescentar algumas das preces contidas na Imitação do Evangelho, tomadas entre as que não tenham um objetivo especial, como, por exemplo, a prece aos anjos da guarda e aos Espíritos protetores, nº. 293; a para afastar os maus Espíritos, nº. 297; para as pessoas que nos foram afeiçoadas, nº. 358; para as almas sofredoras que pedem preces, nº. 360, etc. Fica entendido que é sem prejuízo das preces especiais do culto ao qual se pertence por convicção, e ao qual o Espiritismo não manda renunciar.
Aos que nos pedem uma linha de conduta a seguir no que concerne às preces quotidianas, aconselhamos cada um a fazer uma coletânea apropriada às circunstâncias em que se encontra, por si mesmo, para outrem ou para os que deixaram a Terra, e desenvolvê-las ou restringi-las conforme a oportunidade.
Uma vez por semana, no domingo, por exemplo, pode-se a isto consagrar um tempo mais longo, e dizer todas, quer em particular, quer em comum, se houver lugar, a isso acrescentando a leitura de algumas passagens da Imitação do Evangelho e de algumas boas instruções ditadas pelos Espíritos. Isto é mais especialmente dirigido às pessoas que são repelidas pela Igreja por causa do Espiritismo, e que não sentem menos a necessidade de se unirem a Deus pelo pensamento.
Mas, salvo este caso, nada impede que aqueles que sentem a necessidade de assistir, nos dias consagrados às cerimônias de seu culto, ali digam, ao mesmo tempo, algumas das preces relacionadas com suas crenças espíritas. Isto não pode senão contribuir para elevar sua alma a Deus pela união do pensamento e das palavras. O Espiritismo é uma fé íntima. Ele está no coração e não nos atos exteriores. Ele não prescreve nenhum ato que seja de natureza a escandalizar os que não partilham dessa crença, mas recomenda, ao contrário, a sua abstenção, por espírito de caridade e de tolerância.
Em consideração e como aplicação das ideias precedentes, damos abaixo a Oração dominical desenvolvida. Se algumas pessoas acharem que aqui não seria o lugar adequado para um documento desta natureza, nós lhes lembraríamos que a nossa Revista não é apenas uma coletânea de fatos e que o seu plano abarca tudo o que pode ajudar no desenvolvimento moral. Houve um tempo em que os casos de manifestações eram os únicos a interessar os leitores. Hoje, porém, que o objetivo sério e moralizador do Espiritismo é compreendido e apreciado, a maioria dos adeptos aqui procuram mais o que toca o coração do que o que agrada ao espírito. É, pois, a esses que nos dirigimos nesta circunstância. Por esta publicação, sabemos ser agradável a muitos, senão a todos. Só isto nos teria feito decidir, se outras considerações, sobre as quais devemos guardar silêncio, não nos tivessem determinado a fazê-lo neste momento, e não em outro.
Oração Dominical Desenvolvida
I. PAI NOSSO, QUE ESTAIS NO CÉU, SANTIFICADO SEJA O VOSSO NOME!
Cremos em vós, Senhor, porque tudo revela o vosso poder e a vossa bondade. A harmonia do Universo testemunha uma sabedoria, uma prudência e uma previdência que ultrapassam todas as faculdades humanas; o nome de um ser soberanamente grande e sábio está inscrito em todas as obras da criação, desde o broto de erva e do menor inseto até os astros que se movem no espaço; por toda parte vemos a prova de uma solicitude paternal, eis por que é cego aquele que não vos reconhece em vossas obras, orgulhoso aquele que não vos glorifica e ingrato aquele que não vos rende ações de graça.
II. VENHA A NÓS O VOSSO REINO!
Senhor, destes aos homens leis cheias de sabedoria e que fariam a sua felicidade, se as observassem. Com essas leis eles fariam reinar entre si a paz e a justiça; ajudar-se-iam mutuamente, em vez de se prejudicarem, como fazem; o forte ampararia o fraco, em vez de esmagá-lo; evitariam os males que engendram os abusos e excessos de todos os gêneros. Todas as misérias daqui de baixo vêm da violação de vossas leis, porque não há uma só infração que não tenha suas consequências fatais.
Destes ao animal o instinto que lhe traça o limite do necessário, e ele a isso se conforma maquinalmente, mas ao homem, além desse instinto, destes a inteligência e a razão; também lhe destes a liberdade de observar ou infringir aquelas de vossas leis que lhe concernem pessoalmente, isto é, de escolher entre o bem e o mal, a fim de que ele tenha o mérito e a responsabilidade de suas ações.
Ninguém pode pretextar ignorância de vossas leis, porque, na vossa previdência paternal, quisestes que elas fossem gravadas na consciência de cada um, sem distinção de culto nem de nações. Aqueles que as violam é porque vos desconhecem.
Um dia virá em que, conforme a vossa promessa, todos as praticarão. Então a incredulidade terá desaparecido, e todos vos reconhecerão como Soberano Senhor de todas as coisas, e o reino de vossas leis será o vosso reino na Terra.
Dignai-vos, Senhor, apressar a sua vinda, dando aos homens a luz necessária para conduzi-los no caminho da verdade
III. SEJA FEITA A VOSSA VONTADE, ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU!
Se a submissão é um dever do filho para com o pai, do inferior para com o seu superior, quão maior não deve ser a da criatura para com o seu Criador! Fazer a vossa vontade, Senhor, é observar vossas leis e submeter-se sem murmúrio aos vossos divinos desígnios; o homem a eles submeter-se-á quando compreender que sois a fonte de toda sabedoria e que sem vós ele nada pode; então fará vossa vontade na Terra, como os eleitos no Céu.
IV. O PÃO DE CADA DIA DAI-NOS HOJE.
Dai-nos o alimento para manutenção das forças do corpo; dai-nos, também, o alimento espiritual para o desenvolvimento de nosso Espírito.
O animal encontra sua pastagem, mas o homem a deve à sua própria atividade e aos recursos de sua inteligência, porque o criastes livre.
Vós lhe dissestes: “Tirarás o teu alimento da terra com o suor de teu rosto.” Assim, vós lhe tornastes o trabalho uma obrigação, para que ele exercitasse sua inteligência pela procura dos meios de prover às suas necessidades e ao seu bemestar, uns pelo trabalho material, outros pelo trabalho intelectual. Sem o trabalho, ele ficará estacionário e não poderá aspirar à felicidade dos Espíritos superiores.
Vós ajudais o homem de boa-vontade, que se confia a vós para o necessário, mas não aquele que se compraz na ociosidade e tudo quereria obter sem esforço, nem aquele que busca o supérfluo.
Quantos não sucumbem por sua própria culpa, por sua incúria, sua imprevidência ou sua ambição, e por não terem querido contentar-se com o que lhes haveis dado! Esses são os artífices de seu próprio infortúnio e não têm o direito de lamentar-se, porque são punidos por onde pecaram. Mas esses mesmos, vós não os abandonais, porque sois infinitamente misericordioso. Vós lhes estendeis a mão socorredora desde que, como o filho pródigo, eles voltem para vós sinceramente.
Antes de nos lamentarmos de nossa sorte, perguntemos se não é obra nossa. A cada desgraça que nos chega, perguntemos se de nós não teria dependido evitá-la; mas digamos também que Deus nos deu a inteligência para nos tirar do lodaçal e que de nós depende pô-la em atividade.
Considerando-se que a lei do trabalho é a condição do homem na Terra, dai-nos força e coragem para cumpri-la; dai-nos também a prudência, a previdência e a moderação, a fim de lhes não perder o fruto.
Dai-nos pois, Senhor, o pão nosso de cada dia, isto é, os meios de adquirir, pelo trabalho, as coisas necessárias à vida, pois ninguém tem direito de reclamar o supérfluo.
Se o trabalho nos for impossível, nós nos confiamos à vossa divina Providência.
Se entrar nos vossos desígnios experimentar-nos pelas mais duras provações, malgrado os nossos esforços, nós as aceitamos como uma justa expiação das faltas que podemos ter cometido nesta vida ou em vida precedente, porque sois justo; sabemos que não há penas imerecidas e que jamais castigais sem causa.
Preservai-nos, ó meu Deus, de conceber a inveja contra os que possuem o que não temos, nem mesmo contra os que têm o supérfluo, ainda que nos falte o necessário. Perdoai-lhes se esquecem a lei da caridade e de amor ao próximo que lhes ensinastes.
Afastai, também, do nosso Espírito o pensamento de negar vossa justiça, quando vemos a prosperidade do mau e a infelicidade que por vezes acabrunha o homem de bem. Agora sabemos, graças às novas luzes que vos aprouve nos dar, que vossa justiça sempre recebe o seu cumprimento e não falta a ninguém; que a prosperidade material do perverso é efêmera como a sua existência corpórea, e que ela terá terríveis retornos, ao passo que será eterna e alegria reservada ao que sofre com resignação.
V. PERDOAI AS NOSSAS DÍVIDAS, ASSIM COMO PERDOAMOS AOS NOSSOS DEVEDORES. PERDOAI AS NOSSAS OFENSAS, ASSIM COMO PERDOAMOS AOS QUE NOS OFENDERAM.
Cada uma de nossas infrações às vossas leis, Senhor, é uma ofensa a vós, e uma dívida contraída que, mais cedo ou mais tarde, teremos que resgatar. Solicitamos de vossa infinita misericórdia a sua remissão, sob promessa de fazer esforços para não contrair novas.
Vós fizestes da caridade uma lei expressa, mas a caridade não consiste apenas em assistir ao semelhante em suas necessidades; ela consiste também no esquecimento e no perdão das ofensas. Com que direito reclamaríamos a vossa indulgência, se nós próprios a ela faltamos para com aqueles de que temos de nos lamentar?
Dai-nos, ó meu Deus, a força de abafar em nossa alma todo ressentimento, todo ódio e todo rancor; fazei que a morte não nos surpreenda com um desejo de vingança no coração. Se vos aprouver hoje mesmo nos retirar daqui, fazei que nos possamos apresentar a vós livres de toda animosidade, a exemplo do Cristo, cujas últimas palavras foram em favor de seus carrascos.
As perseguições que os maus nos fazem sofrer são parte de nossas provas terrenas; devemos aceitá-las sem murmuração, como a todas as outras provas, e não maldizer aqueles que, por suas maldades, nos abrem o caminho da felicidade eterna, pois nos dissestes, pela boca de Jesus: “Bem-aventurados os que sofrem por amor à justiça!” Bendigamos, pois, a mão que nos fere e nos humilha, porque as contusões do corpo fortalecem nossa a alma, e seremos exalçados em consequência de nossa humildade.
Bendito seja o vosso nome, Senhor, por nos haverdes ensinado que nossa sorte não será irrevogavelmente fixada após a morte; que em outras existências encontraremos os meios de resgatar e reparar nossas faltas passadas, e de cumprir numa nova vida aquilo que não podemos fazer nesta, para o nosso adiantamento.
Assim se explicam, enfim, todas as anomalias aparentes da vida; é a luz lançada sobre o nosso passado e o nosso futuro, o sinal deslumbrante de vossa soberana justiça e de vossa bondade infinita.
VI. NÃO NOS ABANDONEIS À TENTAÇÃO, MAS LIVRAI-NOS DO MAL.
Dai-nos, Senhor, a força de resistir às sugestões dos maus Espíritos que tentarem desviar-nos da via do bem, inspirando-nos maus pensamentos.
Mas nós mesmos somos Espíritos imperfeitos, encarnados nesta Terra para expiar e nos tornarmos melhores. A causa primeira do mal está em nós, e os maus Espíritos apenas aproveitam nossas más inclinações viciosas, nas quais nos entretêm para nos tentar.
Cada imperfeição é uma porta aberta à sua influência, ao passo que são impotentes e renunciam a toda tentativa contra os seres perfeitos. Tudo quanto podemos fazer para afastá-los será inútil, se não lhes opusermos uma vontade inquebrantável no bem e uma renúncia absoluta ao mal. É, pois, contra nós mesmos que devemos dirigir nossos esforços, e então os maus Espíritos afastar-se-ão naturalmente, porque é o mal que os atrai, enquanto o bem os repele.
Senhor, sustentai-nos em nossa fraqueza; inspirai-nos, pela voz dos anjos da guarda e dos bons Espíritos, a vontade de nos corrigirmos de nossas imperfeições, a fim de fecharmos aos Espíritos impuros e acesso à nossa alma.
O mal não é obra vossa, Senhor, porque a fonte de todo o bem nada pode engendrar de mau. Nós mesmos o criamos infringindo as vossas leis, e pelo mau uso que fizemos da liberdade que nos destes. Quando os homens observarem as vossas leis, o mal desaparecerá da Terra, como já desapareceu dos mundos mais adiantados.
O mal não é uma necessidade fatal para ninguém, e só parece irresistível aos que a ele se abandonam com satisfação. Se temos vontade de fazê-lo, também podemos ter a de fazer o bem. Por isto, ó meu Deus, pedimos a vossa assistência e a dos bons Espíritos, para resistirmos à tentação.
VII. ASSIM SEJA.
Praza-vos, Senhor, que nossos desejos se realizem! Mas nos inclinamos ante a vossa sabedoria infinita. Sobre todas as coisas que não nos é dado compreender, que se faça segundo a vossa santa vontade, e não segundo a nossa, porque não quereis senão o nosso bem e sabeis melhor do que nós o que nos é útil.
Nós vos dirigimos esta prece, ó meu Deus, por nós mesmos, por todas as almas sofredoras, encarnadas e desencarnadas, por nossos amigos e nossos inimigos, por todos os que pedem a nossa assistência.
Pedimos para todos a vossa misericórdia e a vossa bênção.
NOTA: Aqui pode-se mencionar aquilo pelo que agradecemos a Deus, e o que pedimos para nós próprios ou para os outros.
DESTRUIÇÃO DOS ABORÍGINES DO MÉXICO
Escrevem-nos de Bordeaux:
“A Natureza, diz Colombo, ali é tão pródiga, que a propriedade não criou o sentimento de avareza ou de cupidez. Esses homens parecem viver numa idade de ouro, felizes e tranquilos em meio de jardins abertos e sem limites, que não são nem cercados por fossos, nem divididos por paliçadas, nem defendidos por muros. Eles agem lealmente um para com o outro, sem leis, sem livros, sem juízes. Eles consideram mau um homem que se alegra em prejudicar a outro. Este horror dos bons contra os maus parece ser toda a sua legislação.
“Sua religião é apenas o sentimento de inferioridade, de reconhecimento e de amor ao Ser invisível que lhes havia prodigalizado a vida e a felicidade.
“Não há no Universo melhor nação nem melhor país. Eles amam seus vizinhos como a si mesmos; têm sempre uma linguagem suave e graciosa e o sorriso de ternura nos lábios. É verdade que andam nus, mas vestidos de candura e de inocência.”
“Conforme este quadro, esses povos eram infinitamente superiores, não só aos seus invasores, mas o seriam ainda hoje, se comparados aos dos países mais civilizados. Os espanhóis nada tomaram de suas virtudes e os contaminaram com os seus vícios; em troca de sua boa acolhida, não lhes trouxeram senão a escravidão e a morte. Esses infelizes foram, em grande parte, exterminados, e os poucos deles que restam se perverteram ao contacto dos conquistadores.
“Ante esses resultados, pergunta-se:
“Onde o progresso, e que benefício moral a Humanidade colheu de tanto sangue derramado? Não teria sido melhor que a velha Europa tivesse ignorado o Novo Mundo, tão feliz antes dessa descoberta?
“A essa pergunta, assim respondeu meu guia espiritual:
“Nós te responderíamos com prazer, se teu Espírito estivesse em estado de tratar, neste momento, de assunto tão sério, que requer alguns desenvolvimentos espírito-filosóficos. Dirige-te a Kardec. Esta ordem de ideias já foi debatida, mas a ela reportar-se-ão de maneira mais lúcida do que poderias fazê-lo, porque sempre tens o espírito tenso e o ouvido à espreita. É uma consequência de tua posição atual à qual tens que te submeter.”
Disto ressalta uma primeira instrução. É que não basta ser médium, mesmo formado e desenvolvido, para, à vontade, obter comunicações sobre o primeiro assunto que apareça. Esse médium fez as suas provas, mas, nesse momento, seu próprio Espírito, fortemente e penosamente preocupado com outras coisas, não podia ter a calma necessária. É assim que mil circunstâncias podem opor-se ao exercício da faculdade mediúnica. Nem por isso a faculdade deixa de subsistir, mas ela nada é sem o concurso dos Espíritos, que lha dão ou recusam, conforme julgam conveniente, e isto muitas vezes no interesse do médium.
Quanto à pergunta principal, eis a resposta obtida na Sociedade de Paris:
A essa judiciosa explicação acrescentaremos algumas reflexões.
Na extinção das raças, geralmente não se leva em conta que apenas o ser material é destruído, e se esquece o ser espiritual, que é indestrutível e que apenas muda de vestimenta, porque a primeira não era mais compatível com o seu desenvolvimento moral e intelectual. Suponhamos toda a raça negra destruída. Não será destruída senão a vestimenta negra, mas o Espírito, que vive sempre, revestirá primeiramente um corpo intermediário entre o negro e o branco e mais tarde um corpo branco. É assim que o ser colocado no último degrau da Humanidade atingirá, num tempo dado, a soma das perfeições compatíveis com o estado do nosso globo.
Assim, não se deve perder de vista que a extinção das raças só atinge o corpo, e em nada afeta o Espírito. Longe de sofrer com isso, o Espírito ganha um instrumento mais aperfeiçoado, provido de cordas cerebrais que respondem a um maior número de faculdades. O Espírito de um selvagem, encarnado no corpo de um sábio europeu não seria mais sábio e não saberia o que fazer de seu instrumento, cujas cordas inativas atrofiar-se-iam; o Espírito de um sábio, encarnado no corpo de um selvagem, seria como um grande pianista ante um piano ao qual faltassem muitas cordas. Esta tese foi desenvolvida num artigo da Revista de abril de 1862, sobre a perfectibilidade da raça negra.
Sem a menor dúvida, a raça branca caucásica é a que ocupa o primeiro lugar na Terra. Mas, atingiu ela o apogeu da perfeição? Todas as faculdades da alma estão nela representadas? Quem ousaria dizê-lo? Suponhamos, então, que progredindo continuamente, os Espíritos dessa raça acabassem por se encontrar num beco sem saída. A raça desapareceria para dar lugar a outra, de uma organização provida mais ricamente. Assim o quer a lei do progresso. Já não se veem, na própria raça branca, nuanças muito nítidas, como desenvolvimento moral e intelectual? Podemos ficar certos que os mais adiantados absorverão os outros.
O desaparecimento das raças opera-se de duas maneiras: numas, pela extinção natural, em consequência de condições climatéricas e do abastardamento, quando ficam isoladas; noutras, pelas conquistas e pela dispersão que os cruzamentos determinam. Sabe-se que da raça negra e da raça branca saiu uma raça intermediária muito superior à primeira, e que é como que um degrau para os Espíritos desta. Depois, a fusão do sangue traz a aliança dos Espíritos, dos quais os mais avançados ajudam o progresso dos outros. A respeito, quem pode prever as últimas consequências da última guerra da China; as modificações que se vão produzir nesse país há tanto tempo estacionário; os novos elementos fisiológicos e psicológicos levados para lá? Em alguns séculos talvez ele não seja mais reconhecível do que o México de hoje comparado com o do tempo de Colombo.
Quanto aos indígenas do México, diremos, como Erasto, que seus costumes tinham mais doçura do que virtude e acrescentaremos que sem dúvida foi muito poetizada sua pretensa idade de ouro. Ensina-nos a história da conquista que eles guerreavam entre si, o que não indica um grande respeito pelos direitos dos vizinhos. Sua idade de ouro era a da infância. Hoje eles estão no ardor da juventude. Mais tarde atingirão a idade viril. Se ainda não têm a virtude dos sábios, eles adquiriram a inteligência que a ela os conduzirá, quando estiverem maduros pela experiência. No entanto, são necessários séculos para a educação dos povos; ela não se opera senão pela transformação de seus elementos constitutivos. A França seria o que é hoje sem a conquista dos Romanos? E os bárbaros ter-se-iam civilizado se não tivessem invadido a Gália? A sabedoria gaulesa e a civilização romana, unidas ao vigor dos povos do Norte constituíram o povo francês atual.
Sem dúvida é penoso pensar que o progresso por vezes precisa da destruição. Mas, é preciso destruir as velhas cabanas para substituí-las por casas novas, mais belas e cômodas. Além do mais, é preciso levar em conta o estado atrasado do globo, cuja Humanidade está ainda na fase do progresso material e intelectual. Quando ela entrar no período do progresso moral e espiritual, as necessidades morais ultrapassarão as necessidades materiais; os homens governar-se-ão segundo a justiça e não mais terão que reivindicar seu lugar pela força. Então, a guerra e a destruição não mais terão razão de ser. Até lá, a luta é consequência de sua inferioridade moral.
Vivendo mais materialmente que espiritualmente, o homem não encara as coisas senão do ponto de vista atual e material e, por isso, limitado. Até agora ele ignorou que o papel capital é do Espírito. Ele viu os efeitos, mas não tomou conhecimento da causa, e é por isto que durante tanto tempo desencaminhou-se nas ciências, nas suas instituições e nas suas religiões. Ensinando-lhe a participação do elemento espiritual em todas as coisas do mundo, o Espiritismo alarga o seu horizonte e muda o curso de suas ideias. Ele abre a era do progresso moral.
Teríeis a bondade de inserir as seguintes linhas no próximo número de vossa Revista?
Fiquei muito surpreso ao abrir vosso último número (de julho de 1864) e ali encontrar uma carta assinada por Barricand, na qual esse teólogo de mim se ocupa a propósito de um relato que publiquei sobre um de seus cursos antiespíritas (La Vérité, de 10 de abril de 1864).
As observações muito judiciosas com que acompanhais esse inqualificável e muito tardio protesto, certamente ter-me-iam dispensado de respondê-lo pessoalmente, se não tivesse temido que, aos olhos de alguns, o meu silêncio passasse por uma derrota ou um erro. Declaro alto e bom som que minha consciência não poderia associar-se à grave censura que ele me faz de haver fantasiado, desvirtuado o curso de que se trata. Afirmo perante Deus: Se não reproduzi exatamente as mesmas frases, as mesmas palavras pronunciadas por meu contraditor, continuo convicto de lhes haver dado o verdadeiro sentido.
Além disto, se a alta inteligência do Sr. Pe. Barricand julga a minha muito ínfima ou muito pesada para ter podido captar o tema verdadeiro de seu discurso, através dos caminhos sinuosos mas floridos por onde ele passeou; se o Sr Pe. Barricand tira dessa premissa a indução que, em semelhante ocorrência, não me é mais permitido afirmar nem infirmar; palavra, que é bem possível! Neste caso, e para ser fiel a meus princípios de tolerância, eu quase consentiria em me censurar por haver defendido la Vérité e os outros jornais espíritas contra acusações ilusórias, nascidas em meu cérebro em delírio; em bater no peito por haver compreendido que, em vez de dobrar os sinos a finados sobre as nossas cabeças, parece que se contentavam em nos tomar o pulso.
Assim apaziguar-se-á, segundo espero, a ira do senhor deão da Faculdade de Teologia; assim serão reabilitados aos olhos do mundo a sua pessoa e o seu ensino.
E. Edoux
Seguindo o conselho de um de seus amigos, o Sr. Cheminant, membro da Sociedade Espírita de Paris, ao qual havia relatado o que havia acontecido, fez a evocação dessa mulher, com o objetivo de ser-lhe útil. Mas, previamente, pediu conselho a seus guias protetores, dos quais recebeu a seguinte resposta:
“Tu podes, e isto lhe dará prazer, posto seja inútil o serviço que lhe queres prestar. Ela está feliz e inteiramente devotada aos que dela se apiedaram. Tu és um dos seus bons amigos. Ela quase não te deixa, e muitas vezes se entretém contigo sem que o percebas. Mais cedo ou mais tarde os serviços prestados serão recompensados, se não pelo favorecido, por aqueles que por ele se interessam, tanto antes quanto depois da sua morte. Se o Espírito não teve tempo de se reconhecer, são outros Espíritos simpáticos que em seu nome testemunham todo o seu reconhecimento. Isto esclarece o que sentiste no dia de sua morte. Agora é ela que te ajuda no bem que queres fazer. Lembra-te do que disse Jesus: “Aquele que se humilha será exaltado.” Terás a medida dos serviços que ela te pode prestar, se, contudo, só lhe pedires assistência para ser útil a teu próximo.”
─ Boa Juliana Maria, sois feliz, eis tudo quanto eu queria saber. Isto não me impedirá de pensar em vós muitas vezes e de jamais vos esquecer em minhas preces. Resposta:
─ Tem confiança em Deus; inspira aos teus doentes uma fé sincera, e triunfarás quase sempre. Não te ocupes jamais com a recompensa que disso virá. Ela ultrapassará a tua expectativa. Deus sabe sempre recompensar o mérito de quem se dedica ao alívio de seus semelhantes e pratica suas ações com completo desinteresse. Sem isto, tudo não passa de ilusão e quimera. Antes de tudo é necessária a fé; do contrário, nada. Lembra-te desta máxima e ficarás admirado com os resultados que obterás. Os dois doentes que curaste disso são a prova. Nas circunstâncias em que se encontravam, com os simples remédios terias falhado.
Quando pedires a Deus que permita que os bons Espíritos derramem sobre ti seus fluidos benéficos, se o pedido não te fizer sentir um arrepio involuntário, é que tua prece não foi bastante fervorosa para ser escutada; ela só o será nas condições que te assinalo. É o que tens experimentado quando dizes do fundo do coração: ‘Deus todo-poderoso, Deus misericordioso, Deus de bondade sem limites, ouvi a minha prece, e permiti que os bons Espíritos me assistam na cura de...; tende piedade dele, meu Deus, e dai-lhe saúde; sem vós nada posso. Que se faça a vossa vontade.’
Fizeste bem em não desprezar os humildes. A voz daquele que sofreu e suportou com resignação as misérias deste mundo é sempre escutada, e, como vês, um serviço prestado sempre recebe a sua recompensa.
Agora uma palavra a meu respeito, e isto confirmará o que foi dito acima.
O Espiritismo te explica minha linguagem como Espírito. Não preciso entrar em detalhes a respeito disso. Também creio inútil dar-te detalhes da minha existência anterior. A posição em que me conheceste na Terra deve fazer-te compreender e apreciar as minhas outras existências, que nem sempre foram sem reproches. Votada a uma vida de miséria, enferma e sem poder trabalhar, mendiguei a vida toda. Não entesourei, e na minha velhice. Minhas pequenas economias se limitavam a uma centena de francos, que eu reservava para quando as pernas já não me pudessem levar. Deus julgou a minha provação e minha expiação suficientes, e lhes pôs um termo, libertando-me sem sofrimento da vida terrena, porque eu não me suicidei, como a princípio pensaram. Eu caí fulminada à borda do pântano, no momento em que dirigia minha última prece a Deus. A rampa do terreno foi a causa da presença de meu corpo na água. Não sofri; estou feliz por ter podido cumprir minha missão sem entraves e com resignação. Tornei-me útil, na medida de minhas forças e de meus meios, e evitei fazer mal ao próximo. Hoje recebo a recompensa, pelo que dou graças a Deus, nosso divino Mestre, que, no castigo que inflige, alivia a amargura fazendo-nos esquecer, durante a vida, as nossas passadas existências, e põe em nosso caminho almas caridosas, para nos ajudarem a suportar o fardo de nossos erros passados.
Tu, também, persevera, e, como eu, serás recompensado.
Agradeço-te as boas preces e o serviço que me prestaste. Jamais o esquecerei. Um dia nos veremos novamente, e muitas coisas ser-te-ão explicadas. No momento seria supérfluo. Sabe apenas que te sou muito devotada, estou muitas vezes ao teu lado, e sempre que necessitares de mim para aliviar o que sofre.
A pobre mulherzinha JULIANA MARIA
“Obrigado pela bondade de me admitir em vosso meio, caro presidente. Sentistes bem que minhas existências anteriores foram mais elevadas como posição social, e se voltei para sofrer esta provação da pobreza, era para me punir de um vão orgulho que me fazia repelir quem fosse pobre e miserável. Então sofri essa justa lei de Talião, que me tornou a mais horrível mendiga desta região, e, como para me provar a bondade de Deus, eu não era repelida por todos. Isto era todo o meu medo. Assim, suportei minha provação sem murmurar, pressentindo uma vida melhor, de onde não devia mais voltar a esta Terra de exílio e de calamidade. Que felicidade, no dia em que nossa alma, ainda jovem, pode entrar na vida espiritual para rever os seres amados, porque eu também amei e sou feliz por haver reencontrado os que me precederam. Obrigado a esse bom Aubert. Ele me abriu a porta do reconhecimento. Sem sua mediunidade eu não lhe poderia agradecer e lhe provar que minha alma não esquece as felizes influências de seu bom coração e lhe recomendar que propague sua divina crença. Ele é chamado a reconduzir as almas transviadas. Que ele que se persuada bem de meu apoio. Sim, eu lhe posso retribuir ao cêntuplo o que ele me fez, instruindo-o na via que seguis. Agradecei ao Senhor por ter permitido que os Espíritos vos possam dar instruções para encorajar o pobre em suas penas e deter o rico em seu orgulho. Sabei compreender a vergonha que há em repelir um infeliz. Que eu vos sirva de exemplo, a fim de evitar que venhais, como eu, expiar as vossas faltas nessas dolorosas posições sociais que vos colocam tão baixo e vos fazem o rebotalho da Sociedade.
JULIANA MARIA
Transmitida esta comunicação ao Sr. Aubert, por sua vez ele obteve a que se segue, que lhe é uma confirmação.
─ Boa Juliana Maria, considerando-se que quereis mesmo ajudar-me com os vossos bons conselhos a fim de me fazer progredir na via da nossa divina doutrina, tende a bondade de vos comunicardes comigo. Envidarei todos os meus esforços para tirar proveito dos vossos ensinamentos.
─ Lembra-te da recomendação que te vou fazer e jamais dela te afastes. Sê sempre caridoso, na medida das tuas possibilidades; tu compreendes bastante a caridade tal qual deve ser praticada em todas as posições da vida terrena. Assim, não necessito vir dar-te um ensinamento a propósito disso, pois serás tu mesmo o melhor juiz, seguindo, contudo, a voz de tua consciência, que jamais te enganará quando a escutares sinceramente.
“Não te equivoques quanto às missões que vós tendes a cumprir na Terra; pequenos e grandes têm a sua; a minha foi muito penosa, mas eu merecia semelhante punição, por minhas existências precedentes, como vim confessar ao presidente da Sociedade mãe de Paris, à qual todos vos ligareis um dia, e esse dia não está tão longe quanto pensas. O Espiritismo marcha a passos de gigante, malgrado tudo o que fazem para entravá-lo. Marchai, pois, todos, sem medo, fervorosos crentes da doutrina, e vossos esforços serão coroados de sucesso. Pouco vos importe o que dirão de vós. Colocai-vos acima de uma crítica irrisória que recairá sobre os adversários do Espiritismo.
“Os orgulhosos! Eles se julgam fortes e pensam em facilmente vos abater. Vós, meus bons amigos, ficai tranquilos e não temais medir-vos com eles. Eles são mais fáceis de vencer do que supondes. Muitos dentre eles têm medo e temem que a verdade venha, enfim, ofuscar-lhes os olhos. Esperai. Eles virão, por sua vez, ajudar no coroamento do edifício.
JULIANA MARIA
Noticias bibliográficas
Em Paris, um recém chegado se apresenta sob o título despretensioso de Avenir, Monitor do Espiritismo. A maioria de nossos leitores já o conhecem, bem como seu redator-chefe, o Sr. d’Ambel, e puderam julgá-lo por suas primeiras armas. A melhor propaganda é provar o que se pode fazer; é, em seguida o grande júri da opinião que pronuncia o veredicto. Ora, não duvidamos que este não lhe seja favorável, a julgar pela acolhida simpática recebida ao seu aparecimento.
A ele, pois, também as nossas simpatias pessoais, conquistadas previamente por todas as publicações destinadas a servir valorosamente à causa do Espiritismo, porque não poderíamos conscientemente apoiar nem encorajar aquelas que, pela forma ou pelo fundo, voluntariamente ou por imprudência, lhe fossem mais prejudiciais do que úteis, desviando a opinião quanto ao verdadeiro caráter da doutrina, ou oferecendo o flanco aos ataques e às críticas fundadas dos nossos inimigos. Em semelhante caso, a intenção não pode ser reputada pelo fato.
S. João, XVI: 8, 12 e 13.
As reflexões que fizemos acima, a propósito do Avenir, não se aplicam apenas às publicações periódicas, mas às de qualquer outra natureza, volumes ou brochuras, cujo número se multiplica incessantemente, e cujos autores são igualmente campeões que participam da luta e trazem a sua pedra ao edifício. Saudação fraterna de boas-vindas a todos esses defensores, homens e mulheres que, sacudindo o jugo dos velhos preconceitos, hasteiam a bandeira sem segundas intenções pessoais, sem outro interesse além do bem geral e que fazem ressoar o grito libertador e emancipador da Humanidade: Fora da caridade não há salvação! Tão logo foi pronunciado esse grito pela primeira vez, todos compreenderam que ele encerrava toda uma revolução moral há muito tempo pressentida e desejada e que encontrou ecos simpáticos nas cinco partes do mundo. Ele foi saudado como a aurora de um futuro feliz, e em poucos meses tornou-se a palavra de ligação de todos os espíritas sinceros. É que, após uma luta tão grande e tão cruel contra o egoísmo, ele enfim deixava entrever o reino da fraternidade.
A brochura que aqui anunciamos é devida a uma senhora, membro da Sociedade Espírita de Paris, excelente médium, chefe de um grupo particular admiravelmente dirigido e a quem não se poderia censurar senão um excesso de modéstia, se excesso pudesse haver no bem. Se ela assinou seu escrito apenas com as iniciais, é que pensou que um nome desconhecido não é uma recomendação e que ela não se preocupa em aparecer como escritora. Nem por isso ela deixa de ter a coragem de expressar sua opinião, que a ninguém esconde.
A Sra. J. B. é sinceramente católica, mas católica muito esclarecida, o que diz tudo. Sua brochura é escrita desse ponto de vista e, por isso mesmo, se dirige principalmente aos eclesiásticos. É impossível refutar com mais talento, elegância na forma, moderação e lógica, os argumentos que uma fé exclusiva e cega opõe às ideias novas. Recomendamos esse interessante trabalho aos nossos leitores. Eles podem, sem medo, propagá-lo entre as pessoas de uma susceptibilidade muito sombria em relação à ortodoxia, e dá-lo como resposta aos ataques dirigidos contra o Espiritismo, do ponto de vista religioso.
O Sr. Home é um homem do mundo, de maneiras suaves e cheias de urbanidade, e só se revelou à mais alta aristocracia. Jean Hillaire é um simples agricultor da Charente-Inférieure, pouco letrado e que vive de seu trabalho. Suas maiores viagens, ao que parece, foram de Sonnac, sua aldeia, a Saint-Jean-d’Angély e a Bordeaux. Mas Deus, na repartição de seus dons, não leva em conta as posições sociais; ele quer que a luz se faça em todos os níveis da escala, e por isso tanto os concede ao menor como ao maior.
A crítica e a odiosa calúnia não pouparam o Sr. Home. Sem consideração às altas personagens que o honraram com sua estima, que o receberam e ainda o recebem em sua intimidade, a título de comensal e amigo, a incredulidade trocista, que nada respeita, se pôs a escarnecê-lo, a apresentá-lo como um vil charlatão, um hábil trapaceiro, numa palavra, como um refinado saltimbanco. Ela não se deteve nem mesmo ante a ideia de que tais ataques atingiam a honorabilidade das mais respeitáveis pessoas, por isso mesmo acusadas de compadrio com um suposto criador de ilusões. Dissemos a seu respeito que basta tê-lo visto para julgar que ele seria o mais atabalhoado charlatão, porque ele não tem nem as atitudes chocantes nem a loquacidade dos charlatães, características que não se coadunariam com sua timidez habitual. Aliás, quem poderia dizer que ele alguma vez tivesse fixado preço às suas manifestações? O motivo que há pouco tempo o conduzia a Roma, de onde foi expulso, para ali aperfeiçoar-se em escultura e desta fazer profissão, é o mais formal desmentido aos seus detratores. Mas que importa! Eles disseram que é um charlatão e não querem se retratar.
Os que conhecem Hillaire igualmente puderam convencer-se de que ele seria um charlatão ainda mais desajeitado. Nunca seria demais repetir que o móvel do charlatanismo é sempre o interesse; onde não há nada a ganhar, o charlatanismo não tem cabida; onde se tem a perder, seria uma estupidez. Ora, que proveito material tirou Hillaire de suas faculdades? Muita fadiga, uma grande perda de tempo, aborrecimentos, perseguições, calúnias. O que ele ganhou, e que para ele não tem preço, foi uma fé viva, que ele não tinha, em Deus, em sua bondade, na imortalidade da alma e na proteção dos bons Espíritos. Não é precisamente esse o fruto buscado pelo charlatanismo. Mas ele sabe, também, que essa proteção não se obtém senão se melhorando. É isso que ele se esforça por fazer, e também não é isso que interessa aos charlatães. É ainda o que o faz suportar com paciência as vicissitudes e as provações.
Em semelhantes casos, uma garantia de sinceridade está, pois, no absoluto desinteresse. Antes de acusar um homem de charlatanismo, é preciso perguntar que proveito ele tira em enganar, porque os charlatães não são bastante tolos para nada ganharem e ainda menos para perder em vez de ganhar. Assim, os médiuns têm uma resposta peremptória a dar aos detratores, perguntando-lhes: Quanto me pagaram para fazer o que faço? Uma garantia não menos grande e de natureza a causar viva impressão, é a reforma de si mesmo. Só uma convicção profunda pode levar um homem a vencer-se, a desembaraçar-se do que em si há de mau, e a resistir aos perniciosos arrastamentos. Então, já não é apenas a faculdade que admiramos, é à pessoa que respeitamos, e que se impõe à troça.
As manifestações obtidas por Hillaire são para ele uma coisa santa. Ele as considera como um favor de Deus. Os sentimentos que elas lhe inspiram estão resumidos nas seguintes palavras, extraídas do livro do Sr. Bez:
“O rumor desses novos fenômenos espalhou-se por toda parte com a rapidez do relâmpago. Todos os que até então ainda não haviam assistido a manifestações espíritas, ficaram roídos de vontade de ver. Mais do que nunca, Hillaire foi crivado de pedidos, de convites de toda sorte. Ofertas de dinheiro foram feitas por várias pessoas, a fim de convencê-lo a dar sessões em suas casas, mas Hillaire sempre teve a convicção profunda de que suas faculdades só lhe são dadas com objetivo de caridade, a fim de trazer a fé à alma dos incrédulos e de arrancá-los do materialismo que os rói impiedosamente e os mergulha no egoísmo e nos desregramentos. A partir de quando Deus lhe concedeu a graça de se servir dele para esclarecer os seus compatriotas, e as manifestações de uma ordem tão elevada são produzidas por seu intermédio, o simples médium de Sonnac considerou sua mediunidade como puro sacerdócio e se persuadiu que, no dia em que aceitasse a menor retribuição, suas faculdades lhe seriam retiradas, ou seriam entregues como um joguete aos maus Espíritos ou aos levianos, que as utilizariam para fazer o mal ou mistificar todos aqueles que ainda cometessem a imprudência de a ele se dirigirem. Entretanto, a situação pecuniária desse humilde instrumento se acha em estado muito precário. Sem fortuna, é preciso que ele ganhe o pão com o suor de seu rosto e, muitas vezes, a grande fadiga que experimenta quando se produzem algumas manifestações importantes muito prejudica as forças que lhe são necessárias para manejar a pá e a picareta, dois instrumentos que ele incessantemente deve ter nas mãos.”
Nos momentos de desânimo que, como para Job tinham por objetivo experimentar sua fé e sua resignação, Hillaire encontrou asilo e assistência nos amigos reconhecidos, que lhe deviam a consolação pelo Espiritismo. É a isto que se pode chamar uma venda das manifestações dos Espíritos? Certamente não, pois é um socorro que Deus lhe enviou, que ele devia e podia aceitar sem escrúpulo; sua consciência pode estar calma, porque não traficou com os dons que recebeu de graça; ele não vendeu as consolações aos aflitos nem a fé que deu aos incrédulos. Quanto aos que lhe vieram em auxílio, cumpriram um dever de fraternidade, pelo que serão recompensados.
As faculdades de Hillaire são múltiplas. Ele é médium vidente de primeira ordem, auditivo, falante, extático e ainda escrevente. Obteve a escrita direta e transportes admiráveis. Várias vezes foi levantado e transpôs o espaço sem tocar o solo, o que não é mais sobrenatural do que ver erguer-se uma mesa. Todas as comunicações e todas as manifestações que obtém atestam a assistência de muito bons Espíritos e sempre se dão em plena luz. Muitas vezes ele entra espontaneamente em sono sonambúlico, e é quase sempre nesse estado que se produzem os mais extraordinários fenômenos.
A obra do Sr. Bez é escrita com simplicidade e sem exaltação. Não só o autor diz o que viu, mas cita numerosas testemunhas oculares, a maioria das quais se interessaram pessoalmente pelas manifestações. Esses não teriam deixado de protestar contra as inexatidões, sobretudo se ele lhes tivesse feito representar um papel contrário ao que se passou. O autor, justamente estimado e considerado em Bordeaux, não se teria exposto a receber semelhantes desmentidos. Pela linguagem se reconhece o homem consciencioso, que teria escrúpulo em alterar conscientemente a verdade. Aliás, não há um só fenômeno cuja possibilidade não seja demonstrada pelas explicações que se acham no Livro dos médiuns.
Essa obra difere da do Sr. Home por que, em vez de ser um simples relato de fatos muitas vezes repetidos, sem deduções nem conclusões, encerra, sobre quase todos os que são relatados, apreciações morais e considerações filosóficas que dela fazem um livro ao mesmo tempo interessante e instrutivo e no qual se reconhece o espírita, não somente convencido, mas esclarecido.
Quanto a Hillaire, felicitando-o por seu devotamento, nós o exortamos a jamais perder de vista que o que constitui o principal mérito de um médium não é a transcendência de suas faculdades, que lhe podem ser retiradas de um momento a outro, mas o bom uso que delas faz. Desse uso depende a continuação da assistência dos bons Espíritos, porque há uma grande diferença entre o médium bem dotado e o que é bem assistido. O primeiro não excita senão a curiosidade; o segundo, tocado ele próprio no coração, reage moralmente sobre os outros, em razão de suas qualidades pessoais. Tanto no seu interesse, quanto no da causa, desejamos que os elogios de amigos, por vezes mais entusiastas que prudentes, nada lhe tirem de sua simplicidade e de sua modéstia, e não o façam cair na cilada do orgulho que já causou a perda de tantos médiuns.
A falta de espaço obriga-nos a adiar para o próximo número o relato dessa obra importante.
Para saber as condições das obras acima, vide a lista das Obras diversas sobre o Espiritismo.
ALLAN KARDEC