O Ramanenjana
Os Annales de la propagacion de la foi, de setembro de 1864, nº 216, contêm um relato minucioso dos acontecimentos ocorridos em Tananarive, Madagascar, no correr do ano de 1863, entre outros o da morte do rei Radama II. Aí encontramos a seguinte história:
O mais grave dos fatos ocorridos em Tananarive em 1863 é, sem contradita, a morte de Radama II. Mas, antes de contar o fim trágico desse infeliz príncipe, é necessário lembrar um outro fato que quase teve a mesma repercussão que o primeiro, que teve por testemunho mais de duzentos mil homens, e que pode ser encarado como o prelúdio ou o prólogo do atentado cometido contra a pessoa real do infortunado Radama. Quero falar do Ramanenjana.
O que é o Ramanenjana?
Esta palavra, que significa tensão, exprime uma doença estranha, que a princípio se declarou ao sul de Emirne. Dela se teve conhecimento em Tananarive cerca de um mês antes. A princípio era apenas um vago rumor que circulava entre o povo. Assegurava-se que numerosos bandos de homens e mulheres, atingidos por uma afecção misteriosa, subiam do sul para a capital, para falar ao rei, da parte de sua mãe, a defunta rainha. Dizia-se que esses bandos se encaminhavam em pequenas jornadas, cada noite acampando nas aldeias e engrossando, ao longo do caminho, com todos os recrutas que fazia no seu trajeto.
Mas ninguém teria imaginado que o Ramanenjana estivesse tão perto da cidade real quando, de repente, ele fez sua primeira aparição, alguns dias antes do domingo de Ramos.
Eis o que a respeito nos escrevem:
“No momento em que o julgávamos ainda muito afastado, o Ramanenjana, ou Ramena-bé, como outros também o chamam, veio estourar como uma bomba. Não há rumor na cidade senão de convulsões e convulsionários. Eles estão por todos os lados; seu número é avaliado em mais de dois mil. Acampam neste momento em Machamasina, campo de Marte situado junto da capital. O barulho que fazem é tal que não nos deixa dormir. Julgai como deve ser forte, para que a uma légua de distância chegue até aqui e perturbe o sono!
“Na terça-feira santa havia uma grande revista em Soanerana. Quando os tambores rufaram, eis que mais de mil soldados deixaram bruscamente as fileiras e começaram a dançar o Ramanenjana. Por mais que os chefes gritassem e ameaçassem, tiveram que renunciar a passar revista.”
Caráter do Ramanenjana
Esta doença age especialmente sobre os nervos, sobre os quais exerce tal pressão que logo provoca convulsões e alucinações, das quais apenas se dá conta do ponto de vista da Ciência.
Os que são atingidos, a princípio sentem dores violentas na cabeça, na nuca e depois no estomago. Ao cabo de algum tempo começam os acidentes convulsivos; é então que os vivos entram em comunicação com os mortos: Eles veem a rainha Ranavalona, Radama I, Adrian Ampoïnemerina e outros, que lhes falam e lhes dão incumbências. A maior parte dessas mensagens são dirigidas a Radama II.
Os Ramanenjana parecem especialmente deputados pela velha Ranavalona, para exprimir a Radama que ele deve voltar ao antigo regime, fazer cessar a prece, despedir os brancos, interditar os porcos na cidade santa, etc., etc.; senão, do contrário, grandes males o ameaçam, e que ela o renegará como seu filho.
Um outro efeito dessas alucinações é que a maior parte dos que lhes são vítimas imaginam-se carregando pesados fardos que levam seguindo os mortos; que imaginam ter à cabeça uma caixa de sabão ou um cofre, um colchão, fuzis, chaves, bacias de prata, etc., etc.
É preciso que essas aparições andem muito depressa, porque os infelizes que estão às suas ordens fazem o maior esforço do mundo para segui-las, embora vão sempre em passo de corrida.
Eles não receberam mais cedo sua missão de além-túmulo, porque se põem a sapatear, a gritar, a pedir graça, agitando a cabeça e os braços, sacudindo as extremidades do lambá ou um pedaço de pano que lhes cobre o corpo. Depois, ei-los se atirando, sempre gritando, dançando, saltando e se agitando convulsivamente. Seu grito mais comum é: Ekalá! e este outro: Izahay maikiá! (estamos com pressa). Na maioria das vezes uma multidão os acompanha cantando, batendo palmas e tocando tambores. Dizem que é para excitá-los ainda mais e apressar o fim da crise, como se vê o cavaleiro hábil afrouxar as rédeas de seu cavalo fogoso e, longe de procurar retê-lo, o estimular, ao contrário, com gritos e com as esporas, até que este, tremendo sob a mão que o conduz, resfolgando, coberto de suor, acabe parando por si mesmo, exaurido.
Ainda quando essa doença atinja especialmente os escravos, é certo dizer que não poupa ninguém. É assim que um filho de Radama e de Maria, sua concubina, de repente se viu vítima das alucinações do Ramanenjana, e ei-lo a gritar, a se agitar, a dançar e a correr como os outros. No primeiro momento de terror, o próprio rei se pôs a persegui-lo, mas nessa corrida precipitada, feriu-se ligeiramente na perna, o que o levou a dar ordens para que fosse mantido sempre um cavalo selado, para o caso de novo acidente.
As corridas desses energúmenos nada têm de bem determinado. Uma vez impelidos não sei por que força irresistível, espalham-se no campo, uns para um lado, outros para outro. Antes da Semana Santa, iam aos túmulos, onde dançavam e ofereciam uma moeda.
Mas no próprio dia de Ramos, por singular coincidência, uma nova moda ganhou a preferência deles: ir à parte baixa da cidade, cortar uma cana de açúcar. Eles a carregam triunfalmente ao ombro e vêm depositá-la sobre a pedra sagrada de Mahamasin, em homenagem a Ranavalona. Aí dançam, agitam-se com todas as convulsões e contorções de hábito; depois depõem a cana e uma moeda, e voltam correndo, dançando, saltando, assim como foram.
Alguns levam uma garrafa d’água na cabeça, para beber e se borrifar; e, coisa surpreendente! Malgrado tanta agitação e evoluções convulsivas, a garrafa se mantém equilibrada; dir-se-ia pregada e selada no crânio.
Uma nova fantasia acaba de tomá-los, escrevem-nos ainda, a de exigir que se tire o chapéu quando eles passam. Infelizes aqueles que se recusem a obedecer a essa injunção, por mais absurda que seja!
Disso já resultaram muitas lutas, que o pobre Radama julgou poder coibir impondo multa de 150 francos aos recalcitrantes. Para não infringir esse novo gênero de determinação real, a maioria os brancos decidiram sair sem chapéu. Um dos nossos padres viu-se exposto a uma situação muito mais grave. Tratava-se nada mais nada menos que fazê-lo tirar a batina, pois o Ramanenjana pretendia que a cor preta o ofuscava. Felizmente o padre conseguiu escapar e entrar em casa, sem ser obrigado a ficar em camisa.
Os acessos dos convulsionários não são contínuos. Muitos, depois de haver feito suas piruetas diante da pedra sagrada sobre a qual fazem subir o herdeiro do trono para apresentá-lo ao povo, vão atirar-se à água, depois sobem tranquilamente para ir repousar até nova crise.
Outros por vezes caem esgotados no caminho ou na rua, adormecem e acordam curados. Há os que ficam doentes por dois ou três dias antes de se libertarem completamente. Em muitos casos o mal é mais tenaz e por vezes dura uns quinze dias.
Durante o acesso, o indivíduo atingido pelo Ramanenjana não reconhece ninguém. Quase não responde às perguntas que lhe fazem. Depois do acesso, se se lembra de alguma coisa, é vagamente e como num sonho.
Uma particularidade bastante notável é que, em meio às suas evoluções mais estafantes, as mãos e os pés ficam frios como gelo, ao passo que o resto do corpo sua em bica e a cabeça está em ebulição.
Agora, qual pode ser a causa dessa doença singular? Aqui todos estão de acordo. Vários a atribuem pura e simplesmente ao demônio, que se revelou como antes se havia revelado nas mesas girantes, pensantes, etc. Eis por que, pouco preocupados de saudar essa diabólica majestade, muitos se resignaram a andar sem chapéu.
ESTUDO SOBRE O FENÔMENO DO RAMANENJANA
Teria sido muito de admirar se o nome do Espiritismo não tivesse sido envolvido neste caso. Muito felizes ainda os seus adeptos por não terem sido acusados como seus causadores. Que não teriam dito se esses pobres malgaxes tivessem lido o Livro dos Espíritos! Não teriam deixado de afirmar que ele lhes tinha virado a cabeça. Quem, pois, sem o Espiritismo, lhes ensinou a crer nos Espíritos e na comunicação dos vivos com as almas dos mortos? É que o que está na Natureza se produz tão bem nos selvagens quanto nos homens civilizados; no ignorante quanto no sábio, na aldeia como na cidade. Como há Espíritos por toda parte, por toda parte ocorrem manifestações, com a diferença que nos homens próximos da Natureza, o orgulho do saber ainda não embotou as ideias intuitivas, que aí estão vivazes e em toda a sua ingenuidade, motivo pelo qual neles não se encontra a ingenuidade erigida em sistema. Eles podem julgar mal as coisas, dada a estreiteza de sua inteligência, mas a crença no mundo invisível neles é inata e entretida pelos fatos que testemunham.
Tudo prova, pois, que lá, como em Morzine, esses fenômenos são o resultado de uma obsessão ou possessão coletiva, verdadeira epidemia de maus Espíritos, como se produziu ao tempo do Cristo e em muitas outras épocas. Cada população deve fornecer ao mundo invisível ambiente Espíritos similares que, do espaço, reagem sobre essas mesmas populações, das quais, por força de sua inferioridade, eles conservaram os hábitos, as inclinações e os preconceitos. Os povos selvagens e bárbaros estão, pois, cercados por uma massa de Espíritos ainda selvagens e bárbaros, até que o progresso os tenha levado a se encarnarem num meio mais adiantado. É o que resulta da comunicação abaixo.
O relato acima foi lido numa reunião íntima e um dos guias espirituais da família ditou espontaneamente o que segue.
(Paris, 12 de janeiro de 1865 – Médium, Sra. Delanne)
Esta noite eu vos ouvi ler os fatos de obsessão passados em Madagascar. Se o permitis, emitirei minha opinião sobre esse assunto.
OBSERVAÇÃO: O Espírito não tinha sido evocado. Ele lá estava, pois, em meio à sociedade, escutando o que aí se dizia, sem ser visto. É assim que, sem o suspeitar, incessantemente temos testemunhas invisíveis de nossas ações.
Essas alucinações, como as denomina o correspondente do jornal, não são senão uma obsessão, embora de um caráter diverso daquelas que conheceis. Aqui é uma obsessão coletiva, produzida por uma plêiade de Espíritos atrasados que, tendo conservado suas antigas opiniões políticas, vêm por manifestações tentar perturbar os seus compatriotas, a fim de que, tomados de pavor, eles não ousem apoiar as ideias de civilização que começam a implantar-se nesses países onde o progresso começa a raiar.
Os Espíritos obsessores que impelem essas pobres criaturas a tantas manifestações ridículas, são os dos antigos Malgaxes, que ficam furiosos, repito, por verem os habitantes dessas regiões admitindo as ideias de civilização que alguns adiantados, encarnados, têm a missão de implantar entre eles. Assim, muitas vezes os ouvis dizer: “Nada de preces; abaixo os brancos, etc.” Cabe-vos fazer compreender que eles são antipáticos a tudo quando pode vir dos europeus, isto é, do centro intelectual.
Essas manifestações, à vista de toda a gente, não são uma confirmação dos vossos princípios? Elas são produzidas menos para essa gente meio selvagem do que para sanção dos vossos trabalhos.
As possessões de Morzine têm um caráter mais particular, ou melhor, mais restrito. Pode-se estudar in loco as fases de cada Espírito. Observando os detalhes, cada individualidade oferece um estudo especial, ao passo que as manifestações de Madagascar têm a espontaneidade e o caráter nacional. É toda uma população de antigos Espíritos atrasados que veem com despeito sua pátria sofrer o impulso do progresso. Eles próprios, não tendo progredido, buscam entravar a marcha da Providência.
Os Espíritos de Morzine são comparativamente mais adiantados. Embora brutos, eles julgam melhor que os malgaxes; distinguem o bem do mal, pois sabem reconhecer que a forma da prece nada é, mas o pensamento é tudo. Aliás, mais tarde vereis, pelos estudos que fareis, que eles não são tão atrasados quanto parecem à primeira vista. Aqui, é para mostrar que a Ciência é impotente para curar esses casos por seus meios materiais. Lá, é para atrair a atenção e confirmar o princípio.
UM ESPÍRITO PROTOR