Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

Allan Kardec

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Considerações sobre os ruídos de Poitiers

Tiradas do Journal de La Vienne, de 22 de novembro de 1864

Conhece-se a lógica dos adversários do Espiritismo. O resumo seguinte, tirado de um artigo com a assinatura de David (de Thiais), fornece-nos uma amostra disso:

“Amigo leitor, como eu, deveis ter no escritório uma pequena brochura do Sr. Boreau, de Niort, com o título de Como e por que me tornei espírita, in-8º, com facsímile de autógrafo da escrita direta de um Espírito familiar.

“É a mais curiosa das histórias, a de um homem sincero, convicto, amante das coisas elevadas, mas que deifica suas ilusões e incessantemente corre atrás de sonhos, crendo apanhar a realidade. Perseguindo com Jeanne, a sonâmbula, um tesouro enterrado num antigo campo de batalha da Vendée, ele encontra, em vez do ouro prometido, Espíritos barulhentos, malévolos, temíveis, que quase matam de terror a sua companheira e o fazem vítima de dolorosas angústias. Súbito ele se torna espírita, como se as aparições que o obsidiam para ele renovassem os milagres da lâmpada maravilhosa e, ao mesmo tempo, lhe prodigalizassem todos os bens do corpo e da alma.

“É preciso que a ficção seja uma das maiores necessidades do gênio humano, para que semelhantes crenças sejam possíveis.

“Há aí gênios farsistas, que zombam; Espíritos cruéis, que ameaçam e batem; Espíritos grosseiros, com a boca cheia de injúrias e a gente se pergunta o que eles vêm fazer aqui em baixo, já que a morte não os depurou em seus cadinhos terríveis.

“Aí também se satisfazem com dísticos e quadrinhas de um bom anjo, que não trouxe do Céu os segredos de sua poesia, demonstrando quão longe uma ideia preconcebida nos leva no caminho das ilusões.

“Em matéria de Espiritismo, o Sr. Boreau tem a fé do carvoeiro; ele chega ao ponto de amar aqueles que nele batem e o molestam. Nada temos a acrescentar quanto a isto, tanto mais que sua brochura contém páginas tão divertidas, e prova que ele pode privar-se facilmente dos Espíritos exteriores, porque o seu lhe deve bastar muito bem.

“Diremos apenas que os fatos que ele relata não datam de ontem.

“Lembramo-nos ainda da emoção que empolgou a cidade de Poitiers, quando a casa da Rua Saint-Paul fez ouvir, no ano passado, sua formidável artilharia. Uma longa procissão de curiosos rondou durante oito dias em volta dessa casa assombrada pelo demônio; a polícia ali estabeleceu o seu quartel-general e cada um espreitou o voo dos Espíritos para ter a sorte de surpreender os segredos do outro mundo, mas só viram fogo. Os Espíritos só se revelam aos crentes, fazendo todo o barulho do mundo. (Revista Espírita de fevereiro, março e maio de 1864).

“Coisa estranha, leitor! Essas paragens parecem ter o monopólio dessa raça barulhenta e zombeteira.

“Gorre, célebre médico alemão falecido em 1836, ensina no Tomo III de sua Mystique, segundo diz Guillaume d’Auvergne, falecido em 1249, bispo de Paris, que, nessa mesma época, um Espírito batedor se havia introduzido numa casa do dito bairro de São Paulo, em Poitiers, e que atirava pedras e quebrava os vidros.

“Pierre Mamoris, professor de teologia em nossa universidade, autor do Flagellum maleficorum, conta o que se passou em 1447 na Rua Saint-Paul, numa casa onde certo Espírito, entregando-se às suas evoluções ordinárias, lançava pedras, arrastava os móveis, quebrava os vidros, até batia nas pessoas, mas de leve, sem que fosse possível descobrir como ele procedia.

“Conta-se que nessa ocasião Jean Delorme, então cura de Saint-Paul, homem de muita instrução e grande probidade, veio, acompanhado de algumas pessoas, visitar o teatro dessas estranhas proezas e, munido de velas bentas e acesas, água benta e água gregoriana, percorreu todos os aposentos da casa, aspergindo-os e exorcizando-os.

“Mas todos os exorcismos foram impotentes. Nenhum diabo se mostrou. Contudo, a partir daquele momento, o maligno Espírito deixou de manifestar-se[1].

“Assim, com alguns séculos de intervalo, os mesmos fenômenos espíritas se repetem três vezes na mesma cidade e no mesmo bairro. Mas, que concluir disto? Absolutamente nada. Com efeito, não há qualquer consequência importante a tirar de um ruído vão, de brincadeiras pueris, de violências lamentáveis que evidentemente não podem ser atribuídas aos Espíritos, corpos imponderáveis que, planando sobre o mundo, devem escapar às enfermidades humanas, aproximando-se incessantemente da luz e da bondade de Deus.

“Aliás, esta questão não está em discussão. Cada um é livre de escolher os seus Espíritos e de adorá-los à sua maneira, de emprestar-lhes uma virtude, um poder, um caráter em conformidade com as suas aspirações. Somente, nós preferimos aos gênios um tanto materiais da escola moderna, as criações nascidas da poesia dos dias antigos e que, marchando fraternalmente com os homens nos limites dos dois mundos, lhes davam tão docemente a mão, para aproximá-los das fontes da vida imortal e da felicidade sem fim.

“Nenhum Espírito batedor valerá para nós essas adoráveis imagens pintadas pelo gênio de Ossian sobre as nuvens vaporosas do Norte, e cujas harpas melancólicas ainda fazem fremir tão bem as mais íntimas fibras do coração. Quando a alma se evola, tem o cuidado de aliviar suas asas e repele tudo quanto possa tornálas pesadas.”

Devemos agradecimentos ao autor deste artigo, por nos haver dado a conhecer esse fato notável, que ignorávamos, do mesmo fenômeno reproduzido há séculos na mesma localidade. Ele não podia melhor servir à nossa causa, sem o suspeitar, porque desta repetição ele pretende tirar um argumento contra as manifestações. Parece-nos que em boa lógica, quando um fato é único e isolado não se pode deduzir consequência absoluta, pois pode ser devido a uma causa acidental, ao passo que, quando se renova em condições idênticas, é que depende de uma causa constante, isto é, de uma lei. Buscar essa lei é dever de todos os observadores sérios, pois ela pode conduzir a importantes descobertas.

Que, malgrado a duração, o caráter especial e as circunstâncias acessórias dos ruídos de Poitiers, algumas pessoas tenham persistido em atribuí-los à malevolência, compreende-se até um certo ponto. Mas, então, se é pela terceira vez que se renovam na mesma rua e com séculos de distância, há, por certo, matéria para reflexão, porque, se há mal-intencionados, é muito improvável que em tão longo intervalo eles tenham escolhido precisamente o mesmo lugar para teatro de suas ações. Entretanto, que concluir disto? Diz o autor: Absolutamente nada. Assim, porque um fato várias vezes repetido emociona toda uma população, não há qualquer consequência a dele tirar! É uma lógica realmente singular! “São ruídos vãos, divertimentos pueris, que evidentemente não podem ser atribuídos aos Espíritos, corpos imponderáveis que, planando sobre o mundo, devem escapar às enfermidades humanas, aproximando-se incessantemente da luz e da bondade de Deus.” Então o Sr. David crê nos Espíritos, pois descreve os seus atributos com tanta precisão. Onde bebeu tais conhecimentos? Quem lhe disse que os Espíritos são tais quais ele os imagina? Ele os estudou para assim resolver a questão? Diz que “devem escapar às enfermidades humanas.” Às enfermidades corporais, sem dúvida, mas às enfermidades morais também? Então ele crê que o homem perverso, o assassino, o bandido, o mais vil dos malfeitores e ele estarão no mesmo nível quando forem Espíritos? De que lhes terá servido serem honestos em vida, se após a morte serão como se não tivessem sido? Considerando-se que os Espíritos se aproximam incessantemente da luz e da bondade de Deus, o que é mais verdadeiro do que talvez creia o autor, então houve um tempo em que eles estavam longe, porque, para se aproximar de um objetivo é preciso ter estado distante. Onde o ponto de partida? Ele não pode ser senão o oposto à perfeição, isto é, a imperfeição. Seguramente não são Espíritos perfeitos que se divertem com semelhantes coisas, mas se há Espíritos imperfeitos, que há de admirável que cometam malícias? Pelo fato de planarem sobre o mundo, segue-se que dele não podem aproximar-se? Seria supérfluo levar mais longe esta refutação. Os argumentos de nossos adversários, todos mais ou menos da mesma força, não nos teriam levado a transcrever este artigo, se não fosse o precioso documento que ele encerra, pelo que novamente agradecemos ao autor.



[1] Vide brochura do Sr. Bonsergent, na Biblioteca Imperial.


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