Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1865

Allan Kardec

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O Doutor Demeure

Morto em Albi Tarn, a 26 de janeiro de 1865

Mais uma alma de escol acaba de deixar a Terra! O Sr. Demeure era um médico homeopata muito distinto de Albi. Seu caráter, tanto quanto o seu saber, lhe tinha granjeado a estima e a veneração de seus concidadãos. Só o conhecemos através da correspondência sua e de seus amigos, mas isso bastou para nos revelar toda a grandeza e toda a nobreza de seus sentimentos. Sua bondade e sua caridade eram inesgotáveis e, a despeito de sua idade avançada, nenhuma fadiga o detinha para ir socorrer os pobres doentes. O preço de suas consultas era a menor das suas preocupações. Ele se preocupava mais com os infelizes do que com aqueles que podiam pagar, porque, dizia ele, estes últimos, na falta dele, sempre poderiam recorrer a outro médico. Aos primeiros ele não somente dava os remédios gratuitamente, mas muitas vezes deixava com que enfrentarem as necessidades materiais, o que, por vezes, é o mais útil dos medicamentos. Pode-se dizer que ele era o Cura d’Ars da medicina.

O Sr. Demeure havia abraçado com ardor a Doutrina Espírita, na qual tinha encontrado a chave dos mais sérios problemas cuja solução em vão tinha pedido à Ciência e a todas as filosofias. Seu espírito profundo e investigador fê-lo compreender imediatamente todo o seu alcance e, assim, foi um de seus mais zelosos propagandistas. Embora jamais nos tivéssemos visto, dizia-nos em uma de suas cartas que tinha a convicção que não éramos estranhos um ao outro e que havia relações anteriores entre nós. Sua pressa em vir até nós assim que morreu, sua solicitude por nós e os cuidados que nos dispensou na situação em que nos encontrávamos no momento, o papel que ele parece ter sido chamado a desempenhar, parecem confirmar essa previsão que ainda não pudemos verificar.

Soubemos de sua morte no dia 30 de janeiro, e nosso primeiro pensamento foi o de nos comunicarmos com ele. Eis a comunicação que nos deu naquela mesma noite, por intermédio da Sra. Cazemajour, médium.

“Eis-me aqui. Em vida me havia prometido que logo que estivesse morto viria, se isso me fosse possível, apertar a mão do meu caro mestre e amigo Sr. Allan Kardec.

“A morte havia dado à minha alma esse pesado sono que denominamos letargia, mas meu pensamento velava. Sacudi esse torpor funesto que prolonga a turbação que segue a morte, despertei e de um salto fiz a viagem.

“Como sou feliz! Não sou mais velho nem enfermo. Meu corpo era apenas um disfarce imposto. Sou jovem e belo, belo dessa eterna juventude dos Espíritos cujo rosto não é sulcado pelas rugas e cujos cabelos não embranquecem sob a ação do tempo. Sou leve como o pássaro que em voo rápido atravessa o horizonte do vosso céu nebuloso e admiro, contemplo, bendigo, amo e me inclino, átomo, ante a grandeza, a sabedoria, a ciência de nosso Criador, ante as maravilhas que me rodeiam.

“Eu estava junto de vós, caro e venerado amigo, quando o Sr. Sabfalou em fazer a minha evocação, e eu o segui.

“Eu sou feliz! Eu estou na glória! Oh! Quem poderia jamais traduzir as esplêndidas belezas da terra dos eleitos: os céus, os mundos, os sóis, seu papel no grande concerto da harmonia universal? Pois bem! Eu tentarei, ó meu mestre. Vou fazer o seu estudo e virei depor junto a vós a homenagem de meus trabalhos de Espírito que antecipadamente vos dedico. Até breve.

“DEMEURE”


OBSERVAÇÃO: As duas comunicações seguintes, dadas a 1º e 2 de fevereiro, são relativas à doença de que fomos atingidos subitamente a 31 de janeiro. Embora sejam pessoais, reproduzimo-las porque provam que o Sr. Demeure é tão bom como Espírito quanto o era como homem e porque elas oferecem, além disso, um ensinamento. É um testemunho de gratidão que devemos à solicitude de que fomos objeto, de sua parte, nessa circunstância:

“Meu bom amigo, tende confiança em nós e muita coragem. Esta crise, embora fatigante e dolorosa, não será longa, e com os cuidados prescritos, podereis, conforme o vosso desejo, completar a obra que foi o principal objetivo da vossa existência. Entretanto, sou eu que estou sempre aqui, ao vosso lado, com o Espírito de Verdade, que me permite tomar a palavra em seu nome, como o último de vossos amigos vindos entre os Espíritos! Eles me fazem as honras das boas-vindas. Caro mestre, como estou feliz por ter morrido a tempo de estar com eles neste momento! Se eu tivesse morrido mais cedo, talvez tivesse podido evitar esta crise que eu não previa. Havia muito pouco tempo que eu estava desencarnado para me ocupar de outra coisa senão espiritual, mas agora velarei por vós, caro mestre. É vosso irmão e amigo que está feliz de ser Espírito para estar junto de vós e vos proporcionar cuidados na vossa moléstia. Mas conheceis o provérbio: “Ajuda-te, e o Céu te ajudará.” Ajudai, pois, os bons Espíritos nos cuidados que vos dispensam, conformando-vos estritamente às suas prescrições.

“Faz muito calor aqui. Este carvão é fatigante. Enquanto estiverdes doente, não o queimeis, porque ele continua a aumentar a vossa opressão. Os gases que dele se desprendem são deletérios.

“Vosso amigo, DEMEURE”

“Sou eu, Demeure, o amigo do Sr. Kardec. Venho dizer-lhe que eu estava ao seu lado quando lhe ocorreu o acidente que poderia ter sido funesto sem uma intervenção eficaz para a qual tive a honra de contribuir. Segundo minhas observações e os ensinamentos que colhi em fonte fidedigna, é-me evidente que quanto mais cedo se der a sua desencarnação, tanto mais cedo poderá dar-se a sua reencarnação na qual ele virá completar a sua obra. Contudo, é preciso que ele dê, antes de partir, a última demão nas obras que devem completar a teoria doutrinária da qual ele é o iniciador, e ele será considerado culpado de homicídio voluntário pelo fato de contribuir, por excesso de trabalho, com a deficiência de sua organização que o ameaça de uma súbita partida para os nossos mundos. É preciso não ter medo de dizer-lhe toda a verdade, para que ele se guarde e siga as prescrições rigorosamente.

“DEMEURE.”


A comunicação seguinte foi obtida em Montalban, a 1.º de fevereiro, no círculo dos amigos espíritas que ele tinha naquela cidade.

“Antoine Demeure. Não estou morto para vós, meus bons amigos, mas para os que não conhecem, como vós, esta santa doutrina que reúne os que se amavam na Terra e que tiveram os mesmos pensamentos e os mesmos sentimentos de amor e caridade.

“Eu sou feliz. Sou mais feliz do que podia esperar, porque gozo de uma lucidez rara nos Espíritos há pouco tempo desprendidos da matéria. Tende coragem, meus bons amigos! Estarei muitas vezes junto de vós, e não deixarei de vos instruir sobre muitas coisas que ignoramos quando ligados à nossa pobre matéria que nos oculta tantas magnificências e tantos prazeres. Orai pelos que estão privados dessa felicidade, pois não sabem o mal que fazem a si mesmos.

“Hoje não continuarei por muito tempo, mas vos direi que não me acho nada estranho neste mundo dos invisíveis. A mim me parece que sempre o habitei. Aqui me sinto feliz porque vejo os meus amigos e posso comunicar-me com eles sempre que o deseje.

“Não choreis, meus amigos. Vós me faríeis lamentar por ter-vos conhecido. Daí tempo ao tempo, e Deus vos conduzirá a esta morada, onde devemos todos nos reunirmos.

“Boa noite, meus amigos. Que Deus vos console. Estou aqui, ao vosso lado.

“DEMEURE.”


OBSERVAÇÃO: A situação do Sr. Demeure, como Espírito, é exatamente aquela que sua vida tão dignamente e tão utilmente vivida poderia permitir que fosse pressentida, mas um outro fato não menos instrutivo ressalta de suas comunicações, isto é, a atividade que ele desenvolve, quase que imediatamente após a sua morte, para ser útil. Por sua alta inteligência e por suas qualidades morais, ele pertence à ordem dos Espíritos muito adiantados. Ele é muito feliz, mas sua felicidade não é a inação. Há poucos dias ele cuidava de doentes como médico e tão logo desencarnado, apressa-se em dedicar-se a eles como Espírito. O que se ganha, então, em estar no outro mundo, perguntarão certas pessoas, se ali não se goza de repouso? A isto lhe perguntaremos, de saída, se não é nada não ter mais preocupações nem necessidades nem as enfermidades da vida; ser livre e poder, sem fadiga, percorrer o espaço com a rapidez do pensamento, ir ver os seus amigos a toda hora, seja qual for a distância a que se encontrem? Depois acrescentaremos: Quando estiverdes no outro mundo, nada vos forçará a fazer seja o que for. Estareis perfeitamente livres de ficar numa ociosidade beata, tanto tempo quanto quiserdes, mas em breve vos cansareis dessa ociosidade egoísta. Sereis os primeiros a pedir uma ocupação. Então vos será respondido: Se vos aborreceis por nada fazerdes, buscai vós mesmos algo para fazer. As ocasiões para ser útil não faltam nem no mundo dos Espíritos nem entre os homens. É assim que a atividade espiritual não é um constrangimento. Ela é uma necessidade, uma satisfação para os Espíritos que procuram as ocupações em relação com seus gostos e aptidões, e escolhem de preferência as que possam ajudar no seu adiantamento.

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