Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1862

Allan Kardec

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Necrologia Morte do Bispo de Barcelona

“Escrevem-nos da Espanha que o bispo de Barcelona, aquele mesmo que mandou queimar trezentos volumes espíritas pela mão do carrasco, a 9 de outubro de 1861[1], morreu no dia 9 deste mês, e foi enterrado com a pompa costumeira para os chefes da Igreja. Apenas nove meses são decorridos, e já esse auto de fé produz os resultados pressentidos por todos, isto é, apressou a propagação do Espiritismo naquele país. Com efeito, a repercussão daquele ato, inqualificável neste século, chamou para esta doutrina a atenção de uma multidão de criaturas que jamais dela tinha ouvido falar, e a imprensa, fosse qual fosse a sua opinião, não pôde silenciar.

O aparato exibido em tal circunstância era de molde a aguçar a curiosidade pela atração do fruto proibido, e principalmente pela importância dada à coisa, porque cada um teria dito, lá com os seus botões, que não se faz assim com uma ninharia ou com um sonho vão.

Muito naturalmente, o pensamento recuou alguns séculos e deve ter-se lembrado que nesse mesmo país não só queimaram livros, mas criaturas. Que poderiam, pois, conter tais livros que merecessem a solenidade da fogueira? Foi o que quiseram saber.

Na Espanha, o resultado foi o mesmo que em toda parte onde o Espiritismo foi atacado. Sem os ataques trocistas ou sérios de que foi objeto, contaria dez vezes menos partidários do que tem. Quanto mais violenta e insistente foi a crítica, tanto mais ele tomou relevo e se desenvolveu. Os ataques anódinos passam em branco, ao passo que o brilho do raio desperta os mais entorpecidos, que querem ver o que se passa. É tudo quanto pedimos, antecipadamente seguros do resultado do exame. Isso é um fato positivo, pois toda vez que, numa localidade, o anátema desce sobre ele do alto da cátedra, temos certeza de ver aumentar o número dos assinantes, ou de vê-los aparecerem, se não os houvesse antes.

A Espanha não podia escapar a essa consequência. Assim, não há um espírita que não se tenha alegrado ao saber do auto-de-fé de Barcelona, pouco depois seguido pelo de Alicante, e mais de um adversário deplorou um ato com o qual a Religião nada tinha a ganhar. Diariamente temos a prova irrecusável da marcha progressiva do Espiritismo nas classes mais esclarecidas daquele país, onde conta com zelosos e fervorosos adeptos.

Um dos nossos correspondentes na Espanha, anunciando a morte do bispo de Barcelona, nos sugeriu a sua evocação. Dispúnhamo-nos a fazê-lo e, assim, tínhamos preparado algumas perguntas, quando ele se manifestou espontaneamente a um dos nossos médiuns, respondendo por antecipação a todas as perguntas que lhe queríamos fazer, antes que as mesmas fossem enunciadas. Sua comunicação, de caráter absolutamente imprevisto, continha, entre outras, a seguinte passagem:

“...Auxiliado por vosso chefe espiritual, pude vir ensinar-vos com o meu exemplo e vos dizer: Não repilais nenhuma das ideias anunciadas porque um dia, um dia que durará e pesará como um século, essas ideias amontoadas gritarão como a voz do anjo: Caim, que fizeste de teu irmão? Que fizeste de nosso poder, que deveria consolar e elevar a Humanidade? O homem que voluntariamente vive cego e surdo de espírito, como outros o são do corpo, sofrerá, expiará e renascerá para recomeçar o labor intelectual que a sua preguiça e o seu orgulho levaram a evitar. Essa voz terrível me disse: Queimaste as ideias e as ideias te queimarão!...

“Orai por mim. Orai, porque é agradável a Deus a prece que lhe é dirigida pelo perseguido em favor do perseguidor.

“Aquele que foi bispo e que não passa de um penitente.”

Esse contraste entre as palavras do Espírito e as do homem nada tem de surpreendente. Todos os dias vemos gente que após a morte pensa diversamente do que pensava em vida, uma vez caída a venda das ilusões, o que é uma prova incontestável de superioridade. Os Espíritos inferiores e vulgares são os únicos que persistem no erro e nos preconceitos da vida terrena.

Quando vivo, o bispo de Barcelona via o Espiritismo através de um prisma particular, que lhe desnaturava as cores ou, melhor dizendo, ele não o conhecia. Agora o vê sob sua verdadeira luz e lhe sonda a profundidade. Caído o véu, já não é para ele uma opinião, uma teoria efêmera que se pode sepultar nas cinzas. É um fato. É a revelação de uma lei da Natureza, lei irresistível como a força da gravitação, lei que deve, pela força das coisas, ser aceita por todos, como tudo quanto é natural. Eis o que ele compreende agora, e o que o constrangeu a dizer que “as ideias que quis queimar o queimarão”, ou, em outras palavras, prevalecerão sobre os preconceitos que o levaram a condená-las.

Não podemos desejar que assim seja, pelo tríplice motivo de que o verdadeiro espírita a ninguém deseja isso; não conserva rancor; esquece as ofensas e, a exemplo do Cristo, perdoa aos inimigos. Em segundo lugar porque, longe de nos prejudicar, ele nos serviu. Enfim, porque ele reclama de nós a prece do perseguido pelo perseguidor, como a mais agradável a Deus, pensamento todo caridade, digno da humildade cristã revelada pelas suas últimas palavras: “Aquele que foi bispo e que não passa de um penitente”. Bela imagem das dignidades terrenas deixadas à borda da sepultura, para se apresentar a Deus tais quais elas são, sem os atavios impostos aos homens.

Espíritas, perdoemos-lhe o mal que nos quis fazer, como quereríamos que as nossas ofensas nos fossem perdoadas, e roguemos por ele no aniversário do auto de fé de 9 de outubro de 1861.



[1] Vide, para detalhes, a Revista Espírita de novembro e dezembro de 1861.




Morte da Sra. Home

Lemos no Nord, de 15 de julho de 1862:

“O famoso Sr. Dunglas Home passou por Paris nestes dias. Pouca gente o viu. Ele acaba de perder sua esposa, irmã da Condessa Kouchelew-Bezborodko. Por mais cruel que fosse, disse ele que essa perda lhe é menos sensível do que para outro homem, não porque a amasse menos, mas porque a morte não o separa daquela que aqui tinha o seu nome na Terra. Eles se veem e conversam tão à vontade como quando habitavam juntos o mesmo planeta.

“O Sr. Home é católico romano, e sua esposa, antes de soltar o último alento, querendo unir-se ao marido numa última comunhão espiritual, abjurou a religião grega em presença do bispo de Périgueux. Isso se passou no Castelo de Laroche, residência do Conde Kouchelew.”

O folhetim ─ pois é num folhetim, ao lado do Pré-Catalan, que se encontra essa nota ─ é assinado Nemo, um dos críticos que não poupou zombarias aos espíritas e às suas pretensões de conversar com os mortos. Senhor, não é engraçado acreditar que aqueles a quem amamos não estejam perdidos para sempre e que os veremos? Não é mesmo ridículo e muito tolo e supersticioso acreditar que estejam ao nosso lado, que nos vejam e nos escutem, se não os vemos, e que possam comunicar-se conosco? O Sr. Home e sua esposa se veem e conversam tão à vontade como se estivessem juntos. Que absurdo! E dizer que em pleno século dezenove, o século das luzes, haja criaturas tão crédulas que acreditem em semelhantes tolices, dignas dos contos de Perrault!

Perguntem a razão disso ao Sr. Trousseau. O nada, falai-me disso! Isso é que é lógico! A gente tem mais liberdade de fazer na vida aquilo que se quer. Ao menos não se teme o futuro. Sim, mas onde a compensação para o infeliz? ─ Nemo, singular pseudônimo para a circunstância!

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