Revista espírita — Jornal de estudos psicológicos — 1860

Allan Kardec

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Dos animais

Dissertações espontâneas feitas pelo Espírito de Charlet, em Várias sessões da sociedade

I
Há entre vós uma coisa que sempre vos excita a atenção e a curiosidade. Esse mistério, pois que é para vós um grande mistério, é a ligação, ou antes, a distância existente entre a vossa alma e a dos animais, mistério que, a despeito de toda a sua ciência, Buffon, o mais poético dos naturalistas, e Cuvier, o mais profundo, jamais puderam penetrar, assim como o escalpelo não vos detalha a anatomia do coração. Ora, sabei, os animais vivem, e tudo o que vive pensa. Não se pode, pois, viver sem pensar.

Assim sendo, resta demonstrar-vos que quanto mais o homem avança, não conforme o tempo, mas conforme a perfeição, mais penetrará a ciência espiritual, o que se aplica não somente a vós, mas também aos seres que estão abaixo de vós: os animais. Oh! exclamarão alguns homens, persuadidos de que o vocábulo homem significa todo o aperfeiçoamento, mas há um paralelo possível entre o homem e o bruto? Podeis chamar inteligência àquilo que não passa de instinto? Sentimento ao que é apenas sensação? Numa palavra, podeis rebaixar a imagem de Deus? Responderemos. Houve um tempo em que a metade do gênero humano era considerada no nível do bruto, em que o animal não figurava; um tempo, que é agora o vosso, em que a metade do gênero humano é encarada como inferior e o animal como bruto. Então! Do ponto de vista do mundo é assim, não há dúvida. Do ponto de vista espiritual a coisa é diferente. O que os Espíritos superiores diriam do homem terreno, os homens dizem dos animais.

Tudo é infinito na Natureza, tanto o material como o espiritual. Ocupemo-nos pois um pouco desses pobres brutos, espiritualmente falando, e vereis que o animal vive realmente, desde que pensa.

Isto serve de prefácio a um pequeno curso que vos darei a esse respeito. Aliás, em vida, eu havia dito que a melhor companhia do homem é o cão. Continua no próximo número.
CHARLET

II


O mundo é uma escada imensa, cuja elevação é infinita, mas cuja base repousa num horrível caos. Quero dizer que o mundo não é senão um progresso constante dos seres. Estais muito embaixo. Não obstante, há muitos abaixo de vós. Porque, ouvi bem, não falo apenas do vosso planeta, mas de todos os mundos do Universo.
Não temais, porém, pois nos limitaremos à Terra.

Antes disso, entretanto, duas palavras sobre um mundo chamado Júpiter, do qual o engenhoso e imortal Palissy vos deu alguns esboços estranhos e tão sobrenaturais para a vossa imaginação. Lembrai-vos de que num desses encantadores desenhos ele vos representou alguns animais de Júpiter. Não há neles um progresso evidente? Podeis negar-lhes um grau de superioridade sobre os animais terrestres? E ainda só vedes nisso um progresso de forma e não de inteligência, posto que a atividade de que se ocupam não possa ser executada pelos animais terrestres? Só vos cito este exemplo para vos indicar desde logo uma superioridade de seres que estão muito abaixo de vós. Que seria se vos enumerasse todos os mundos que conheço, isto é, cinco ou seis? Mas limitando-nos à Terra, vede a diferença que entre eles existe. Então! Se a forma é tão variada, tão progressiva, que mesmo na matéria há progresso, podeis deixar de admitir o progresso espiritual desses seres? Ora, sabei-o, se a matéria progride, mesmo a mais atrasada, com mais forte razão o espírito que a anima. Continuarei da próxima vez.
CHARLET

NOTA: Com o número de agosto de 1858, publicamos uma prancha desenhada e gravada pelo Espírito de Bernard Palissy, representando e casa de Mozart em Júpiter, com uma descrição desse planeta, que foi sempre designado como um dos mundos mais adiantados do nosso turbilhão solar, moralmente e fisicamente. O mesmo Espírito deu um grande número de desenhos sobre o mesmo assunto. Entre outros, há um que representa uma cena de animais, jogando na parte reservada para sua habitação, na casa de Zoroastro. É, sem dúvida, um dos mais interessantes da coleção. Entre os animais apresentados, há uns cuja forma se aproxima bastante da forma humana terrena, tendo ao mesmo tempo algo do macaco e do sátiro. Sua ação denota inteligência e compreende-se que sua estrutura possa prestar-se aos trabalhos manuais que executa para os homens. São, ao que se diz, criados e operários, pois os homens só se ocupam de trabalhos da inteligência. É a esse desenho, feito há mais de três anos, que alude Charlet na comunicação acima.

III

Nos mundos adiantados, os animais são de tal modo superiores que a mais rigorosa ordem lhes é dada pela palavra, e entre vós, muitas vezes, a pauladas. Em Júpiter, por exemplo, basta uma palavra, e entre vós as chicotadas não bastam.

Contudo, há um sensível progresso em vossa Terra, jamais explicado: é que o próprio animal se aperfeiçoa. Assim, outrora o animal era muito mais rebelde ao homem. Também há progresso de vossa parte, por terdes instintivamente compreendido esse aperfeiçoamento dos animais, pois que vos proibis de bater neles. Eu dizia que há progresso moral no animal. Há também progresso de condição. Assim, um pobre cavalo açoitado, ferido por um carroceiro mais brutal que ele, comparativamente estará numa condição muito mais tranquila, mais feliz que a de seu carrasco. Não é de toda justiça, e devemos acaso admirar-nos de que um animal que sofre, que chora, que é reconhecido ou humilhado, conforme a suavidade ou a crueldade de seus donos, tenha a recompensa por haver pacientemente suportado uma vida cheia de torturas? Antes de tudo, Deus é justo e todas as suas criaturas estão sob suas leis, e estas dizem: “Todo ser fraco que tiver sofrido será recompensado.” Sempre comparativamente ao homem, entendo, e ouso acrescentar, para concluir, que por vezes o animal tem mais alma, mais coração que o homem, em muitas circunstâncias.
CHARLET



IV

Em vosso globo a superioridade do homem se manifesta por essa elevação da inteligência que o torna o rei da Terra. Ao lado do homem, o animal é muito fraco, muito inferior e, pobre escravo desta terra de provação, por vezes tem que suportar caprichos cruéis de seu tirano: o homem! A antiga metempsicose era uma lembrança muito confusa da reencarnação e, contudo, essa mesma doutrina não passa de crença popular. Os grandes Espíritos admitiam a reencarnação progressiva; não compreendendo como eles o Universo, a massa ignorante naturalmente dizia: Desde que o homem se reencarna, isto não pode ser senão na Terra; então sua punição, seu tártaro, sua provação é a vida no corpo de um animal. Absolutamente como na Idade Média, os cristãos diziam: É no grande vale que se dará o julgamento, após o que os condenados irão para baixo da terra, queimar-se em suas entranhas.

Acreditando na metempsicose, os antigos acreditavam, portanto, em espíritos de animais, desde que admitiam a passagem da alma humana para corpos de animais. Pitágoras lembrava-se de sua antiga existência e reconhecia o escudo que usara no cerco de Troia. Sócrates morreu predizendo sua nova vida.

Desde que, como disse, tudo é progresso no Universo; desde que as leis de Deus não são e não podem ser senão leis do progresso, do ponto de vista em que estais, do ponto de vista de vossas tendências espiritualistas, não admitir o progresso
do que está abaixo do homem seria insensato e uma prova de ignorância ou de completa indiferença.

Como o homem, o animal tem aquilo a que chamais consciência, e que não é outra coisa senão a sensação da alma quando fez o bem ou o mal? Observai e vede se o animal não dá prova de consciência, sempre, relativamente ao homem. Credes que o cão não saiba quando fez o bem ou o mal? Se não o sentisse, não viveria.

Como já vos disse, a sensação moral, numa palavra, a consciência, existe nele como no homem, sem o que seria preciso negar-lhe o sentimento de gratidão, o sofrimento, os pesares, enfim todos os caracteres de uma inteligência, caracteres que todo homem sério pode observar em todos os animais, conforme seus diversos graus, porque, mesmo entre eles, há diversidades singulares.
CHARLET

V

Rei da Terra pela inteligência, o homem é também um ser superior do ponto de vista material. Suas formas são harmoniosas e, para se fazer obedecer, seu Espírito tem um organismo admirável: o corpo. A cabeça do homem é alta e olha o céu, diz o Gênesis; o animal olha a terra e, pela estrutura de seu corpo, a ela parece mais ligado que o homem. Além disso, a harmonia magnífica do corpo humano não existe no animal. Vede a infinita variedade que os distingue uns dos outros e que, entretanto, não corresponde ao seu Espírito, porque os animais ─ e entendo sua imensa maioria ─ têm, quase todos, o mesmo grau de inteligência. Assim, no animal há variedade na forma; ao contrário, no homem há variedade no Espírito. Tomai dois homens que tenham os mesmos gostos, aptidões, inteligência; tomai um cão, um cavalo, um gato, numa palavra, mil animais, e dificilmente notareis diferenças em sua inteligência. Assim, o Espírito dorme no animal; no homem brilha em todos os sentidos; seu Espírito adivinha Deus e compreende a razão de ser da perfeição.

Assim, pois, no homem, a harmonia simples da forma, começo do infinito no Espírito. Vede agora a superioridade do homem que domina o animal, materialmente por sua estrutura admirável e intelectualmente por suas imensas faculdades. Parece que, nos animais, aprouve a Deus variar mais a forma, encerrando o Espírito; ao contrário, no homem, fazer do próprio corpo humano a manifestação material do Espírito.

Igualmente admirável nessas duas criações, a Providência tanto é infinita no mundo material quanto no espiritual. O homem está para o animal como a flor e todo o reino vegetal estão para a matéria bruta. Nestas poucas linhas quis eu estabelecer o lugar que deve ocupar o animal na escala da perfeição. Veremos como pode elevar-se comparativamente ao homem.
CHARLET

VI

Como se eleva o Espírito? Pela submissão, pela humildade. O que perde o homem é a razão orgulhosa, que o impele a desprezar todo subalterno e invejar todo superior. A inveja é a mais viva expressão do orgulho. Não é o prazer do orgulho, é o desejo doentio, incessante, de poder gozá-lo. Os invejosos são os mais orgulhosos, quando se tornam poderosos. Olhai o mestre de todos vós, o Cristo, o homem por excelência, mas na mais alta fase da sublimidade. O Cristo, digo eu, em vez de vir com audácia e insolência para derrubar o mundo antigo, vem à Terra encarnar-se numa família pobre e nasce entre os animais. Encontrareis por toda parte esses pobres animais, em todos os instantes em que o homem vive simplesmente com a natureza, numa palavra, pensando em Deus. Ele nasce entre os animais e estes lhe exaltam o poder na sua linguagem tão expressiva, tão natural e tão simples. Vede que tema para reflexão! O Espírito ainda inferior que os anima pressente o Cristo, isto é, o Espírito em toda a sua essência de perfeição. Balaão, o falso profeta, o orgulho humano em toda a sua corrupção, blasfemou contra Deus e bateu no seu animal. De súbito, o Espírito ilumina o Espírito ainda muito vago do jumento e ele fala. Por um instante torna-se igual ao homem e, por sua palavra, é o que será dentro de alguns milhares de séculos. Poderíamos citar muitos outros fatos, mas este me parece bem notável, a propósito do que eu dizia sobre o orgulho do homem, que nega até a sua alma, por não poder compreendê-la, e vai até a negação do sentimento entre os seres inferiores, entre os quais o Cristo preferiu nascer.
CHARLET

VII

Eu vos entretive durante algum tempo com o que vos havia prometido. Como disse de começo, não falei do ponto de vista anatômico ou médico, mas apenas da essência espiritual que existe nos animais. Terei ainda que falar sobre outros vários pontos que, sendo bem diferentes, não são menos úteis à Doutrina. Permiti-me uma última recomendação, a de refletir um pouco sobre quanto eu disse. Não é extenso, nem pedante e, crede-me, nem por isso é menos útil. Um dia, quando o Bom Pastor dividir suas ovelhas, que vos possa contar entre os bons e excelentes animais que tiverem seguido melhor os seus preceitos. Perdoai-me esta imagem um pouco viva. Ainda uma vez, precisais refletir no que vos digo. Aliás, continuarei a vos falar enquanto quiserdes. Terei que vos dizer outra coisa da próxima vez, para definir meu pensamento sobre a inteligência dos animais. Todo vosso,
CHARLET

VIII

Tudo quanto vos posso dizer no momento, amigos, é que vejo com prazer a linha de conduta que seguis. Que a caridade, esta virtude das almas verdadeiramente francas e nobres, seja sempre o vosso guia, pois é o sinal da verdadeira superioridade. Perseverai neste caminho que necessariamente vos deve conduzir todos, a despeito dos esforços cuja força não suspeitais, à verdade e à unidade.

A modéstia também é um dom muito difícil de adquirir, não é, senhores? É uma virtude bastante rara entre os homens. Pensai que para progredir na via do bem e do progresso, só tendes que usar a modéstia. Sem Deus, sem seus divinos preceitos, que seríeis? Um pouco menos que esses pobres animais dos quais vos falei, e sobre os quais tenho ainda a intenção de vos entreter. Cingi os rins e preparai-vos para lutar de novo, mas não fraquejeis. Pensai que não é contra Deus que lutais, como Jacó, mas contra o Espírito do mal, que invade tudo e a vós próprios, a cada instante.

O que vos tenho a dizer seria muito longo para esta noite. Tenho a intenção de vos explicar a queda moral dos animais, após a queda moral do homem. Para concluir o que vos disse sobre os animais, tomarei por título: O primeiro homem feroz e o primeiro animal tornado feroz.

Desconfiai dos Espíritos maus. Não suspeitais de sua força, disse-vos há pouco.

Embora esta última frase não se relacione com a precedente, não é menos verdadeira e a propósito. Agora, refleti.
CHARLET

OBSERVAÇÃO: O Espírito achou que devia interromper naquele dia o assunto principal de que tratava, para nos dar este ditado incidental, motivado por uma circunstância particular de que se quis aproveitar. Publicamo-lo, não obstante, porque encerra úteis instruções.

IX

Quando foi criado o primeiro homem, era tudo harmonia na Natureza. A onipotência do Criador tinha posto em cada ser uma palavra de bondade, de generosidade e de amor. O homem era radioso. Os animais desejavam seu olhar celeste e suas carícias eram as mesmas para ele e para sua celeste companheira. A vegetação era luxuriante. O sol dourava e iluminava toda a Natureza, da mesma forma que o sol misterioso da alma, centelha de Deus, iluminava interiormente a inteligência do homem. Numa palavra, todos os reinos da Natureza apresentavam essa calma infinita, que parecia compreender Deus. Tudo parecia ter bastante inteligência para exaltar a onipotência do Criador. O céu sem nuvens era como o coração do homem, e a água límpida e azul tinha reflexos infinitos, como a alma do homem tinha os reflexos de Deus.

Muito tempo depois, tudo pareceu mudar subitamente. A Natureza oprimida soltou um longo suspiro e, pela primeira vez, a voz de Deus se fez ouvir. Terrível dia de desgraça, em que o homem, que até então não tinha ouvido senão a grande voz de Deus, que lhe dizia em tudo: “Tu és imortal”, ficou apavorado com estas terríveis palavras: “Caim, por que mataste teu irmão?” Logo, tudo mudou: o sangue de Abel espalhou-se por toda a Terra; as árvores mudaram de cor; a vegetação, tão rica e colorida, murchou; o céu tornou-se escuro.

Por que o animal se tornou feroz? Magnetismo todo poderoso, invencível, que então tomou todas as criaturas, a sede de sangue, o desejo de carnificina brilhavam em seus olhos, outrora tão suaves, e o animal tornou-se feroz como o homem. Pois o homem, que tinha sido o rei da Terra, não havia dado o exemplo? O animal seguiu o seu exemplo e desde então a morte planou sobre a Terra, morte que se tornou odiosa, em vez de uma transformação suave e espiritual. O corpo do homem deveria dispersar-se no ar, como o corpo do Cristo, mas dispersou-se na terra, nessa terra regada pelo sangue de Abel. E o homem trabalhou, e o animal trabalhou.
CHARLET

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